N° Edição: 2276
| 28.Jun.13 - 20:40
| Atualizado em 29.Jun.13 - 18:48
O poder se mexe
Num processo iniciado pela presidenta
Dilma, Executivo, Legislativo e Judiciário respondem às manifestações,
mas ainda há muito o que fazer
Paulo Moreira Leite, Izabelle Torres, Josie Jeronimo e Laura Daudén
Depois de atravessar o País inteiro em
passeatas memoráveis, confrontos duros com a polícia e embalar cenas
lamentáveis de baderna, o terremoto político iniciado com o Movimento
Passe Livre de São Paulo obrigou o poder de Brasília a se mover. Entre
medidas de subsídio e investimentos diretos no transporte público,
gastos definidos para saúde e educação e outras rubricas do Estado
brasileiro, encaminharam-se demandas estimadas R$ 115 bilhões anuais,
grandeza que só costuma ocorrer após grandes catástrofes e situações de
guerra.
UMA VITÓRIA DAS RUAS
Sob pressão dos manifestantes que lotavam as
galerias da Câmara, parlamentares derrubam a PEC 37,
mantendo o poder de o Ministério Público investigar
Enquanto deputados, senadores e governadores mantinham absoluto
silêncio, em meio às pressões das ruas, a presidenta deu às caras, foi à
televisão, e concorde-se ou não com as medidas adotadas ao longo da
semana para dar resposta efetivas às manifestações, ela chamou a
responsabilidade para si. Tomou atitudes de quem compreende a gravidade
da situação e seu lugar dentro dela. Cancelou uma viagem de sete dias ao
Japão e, criticada por conversar pouco e mandar muito, passou a
semana em diálogos variados. Recebeu prefeitos e governadores na
segunda-feira 24, mas também conversou com a garotada que começou as
mobilizações em São Paulo. Ainda reuniu-se com Joaquim Barbosa,
presidente do Supremo Tribunal Federal, encontrou-se com sindicalistas e
a oposição e, na sexta-feira 28, estava em audiência com lideranças do
movimento gay. Do mesmo modo que o aumento da tarifa de transporte
público foi a faísca que deflagrou os protestos no País, Dilma foi quem
detonou a reação dos Três Poderes, até então desorientados e atônitos.
Só, a partir daí, que Executivo, Legislativo e Judiciário passaram a se
mexer. No capítulo das medidas de moralização do Estado, o Senado
aprovou uma lei que define a corrupção como crime hediondo, reservando,
para autoridades condenadas, penas que agravam sua condenação em um
terço. Numa virada impressionante de humores na Câmara de Deputados, os
parlamentares derrotaram a PEC 37 – que garantia exclusividade para a
polícia realizar investigações criminais, diminuindo o papel do
Ministério Público – por 430 votos a 9. Quinze dias antes, a aprovação
da PEC 37 era vista como favas contadas pelos estudiosos do Congresso.
Numa decisão que facilitará a punição de parlamentares condenados por
corrupção, suspendeu-se o voto secreto na cassação de mandatos. O
Supremo Tribunal Federal, por sua vez, mostrou estar em sintonia com o
clamor popular ao pedir a prisão do deputado federal Natan Donadon
(PMDB-RO), que já estava entrando no último ano de mandato. Acusado de
peculato, o parlamentar estava condenado desde 2010. Depois de passar
mais de 24h desaparecido, Donadon se entregou à polícia na sexta-feira
28 em Brasília.
Reforma política
A prisão de Donadon foi considerada um marco, além de mais uma vitória
dos movimentos das ruas, já que desde a redemocratização nenhum
parlamentar havia sido preso. Mas o que dominou os debates ao longo da
semana foi a proposta de reformulação do sistema político-eleitoral
brasileiro. Na segunda-feira 24, numa nova aparição pela TV em 72
horas, Dilma anunciou medidas para encaminhar uma reforma política,
talvez a mais antiga quimera da democracia brasileira desde o fim do
regime militar. Reelaborada várias vezes ao longo da semana, a proposta
do governo consiste em duas etapas. Submeter um rascunho de possíveis
mudanças em nosso sistema político a um plebiscito, cuja data esperada
pelo Planalto é 18 de agosto, terceiro domingo daquele mês. Com este
rascunho em mãos, o Congresso seria encarregado de formular uma nova lei
eleitoral, com regras novas para financiamento de campanha, para
eleições parlamentares – voto proporcional, como hoje, ou voto distrital
– e outras medidas. Trabalhando em prazos acelerados, o governo espera
que os trabalhos estejam concluídos a tempo das novas regras já se
encontrarem em vigor no ano eleitoral de 2014, quando os eleitores irão
às urnas durante a sucessão de Dilma Rousseff.
SAINDO DA INÉRCIA
Dilma Rousseff reúne prefeitos e governadores no Palácio do Planalto
na segunda-feira 24. Começava ali a reação dos Três Poderes
Considerando o tamanho monstruoso da crise que envolveu Brasília na
semana passada, forçando o Congresso a tomar medidas insólitas – o
Senado chegou a votar a lei que estabelece corrupção como crime hediondo
durante o jogo Brasil x Uruguai pela Copa das Confederações -- pode-se
dizer que a reação do governo foi apropriada. Diante de tremores de
alcance imprevisível sobre o regime democrático, o Planalto foi buscar a
saída na soberania popular e no voto dos brasileiros. Nem todos os
encaminhamentos foram bem sucedidos, mas a presidenta teve capacidade
para corrigir a rota quando achou necessário.
Trilhando caminhos jurídicos que foram experimentados, em seu devido
tempo, pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula
da Silva, que também cogitaram reformar o sistema político por uma
estratégica parecida, a presidenta entrou nos debates com a proposta de
realizar um plebiscito para convocar uma Constituinte destinada,
exclusivamente, a aprovar reformas definidas por parlamentares eleitos
especialmente para este fim. O problema desta ideia não era o que fazer,
somente. Mas como.
Adversário conhecido da tese de Constituinte exclusiva, o
vice-presidente Michel Temer não foi consultado. Outros integrantes da
cúpula do governo, inclusive os ministros que em tese seriam os mais
próximos da presidenta, só receberam a notícia quando parecia um fato
consumado. Dentro e fora do Planalto, criou-se um ambiente que podia ser
de aplauso ou de crítica, mas sempre exibia algum grau de perplexidade.
Vinte e quatro horas depois, durante um encontro com entidades que
haviam preparado um projeto de lei eleitoral, a Constituinte foi
abandonada.
Na manhã de terça feira, num encontro que reuniu onze pessoas no
Planalto, entre elas Marcus Vinícius Furtado Coelho, presidente do
Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, e o juiz Marlon
Reis, principal liderança do movimento Ficha Limpa, a presidenta
declarou-se animada com um dos itens do projeto apresentado pelos dois –
que prevê eleição em dois turnos para escolha de deputados, numa
primeira rodada por listas partidárias e, numa segunda, por voto
nominal. Com isso, o eleitor é atendido em seu costume de votar em
indivíduos, tradição bem brasileira e, ao mesmo tempo, os partidos
políticos são fortalecidos. “Vocês colocaram o ovo em pé,” elogiou a
presidenta. Discutindo como se poderia avançar em direção das mudanças
pretendidas, os visitantes demonstraram que seria possível aprovar tudo
sem passar por uma Constituinte – nem mesmo por uma PEC, ou proposta de
emenda constitucional. Tudo poderia passar por lei comum, disseram.
Voltando-se para Michel Temer e José Eduardo Cardozo, ministro da
Justiça, a presidenta consultou os dois pelos olhos. Não se falou mais
em Constituinte.
Na quinta-feira 27, a bancada do governo no Senado estava tão animada
com a ideia que já discutia até a formação de grupos temáticos, mas o
ambiente de Brasília não justificava otimismo quanto a ritmos e prazos.
As relações entre o governo e o PT continuam delicadas, enquanto o
convívio entre o Planalto e o PMDB atingiu a fronteira entre civilização
e barbárie. Se quiser levar a proposta de plebiscito em frente, o
governo irá precisar do apoio do PMDB, mais do que nunca. Embora ninguém
possa prever como o Congresso vai se comportar depois do terremoto de
protestos, o PSDB, o DEM e o PPS já se colocaram como adversários do
plebiscito. Eles querem debater a reforma política dentro do Congresso,
entre senadores e parlamentares, e só então submeter o resultado final à
aprovação popular. Num debate a portas fechadas pelo Congresso, será
mais difícil aprovar proposições que agradam ao governo e ao PT, como o
financiamento público de campanha. As medidas de caráter
administrativo o governo Dilma pode resolver em conjunto com os
ministros. As mudanças ocorridas em outras áreas são naturalmente mais
fáceis de realizar. Foi ali que ocorreram os maiores avanços ao longo da
semana.
Educação
Em ruas de todo o Brasil se ouviu o grito “Da Copa eu abro mão. Eu
quero mais dinheiro para saúde educação”. O pedido foi atendido.
Primeiro pela presidenta Dilma Rousseff, que, em pronunciamento na
sexta-feira 21, pediu que o Congresso votasse a proposta destinava 100%
dos royalties da exploração do petróleo para a educação. Depois pela
própria Câmara dos Deputados, que seguiu as orientações do governo e
aprovou a medida, ainda que com alterações: 75% dos recursos irão para
as escolas e 25% serão destinados à saúde. Além disso, os deputados
também decidiram reservar à educação 50% dos recursos do Fundo Social do
Pré-Sal. O projeto segue agora para o Senado, onde será votado em
regime de urgência.
É certo, como lembra Priscila Cruz, da ONG Todos pela Educação
(TPE), que a vinda de mais recursos não resolve, sozinha, o problema dos
estudantes brasileiros. A grande questão consiste em definir
prioridades corretas. “O Brasil é um país que contém diversos países.
Temos a Suíça, mas também a África do Sul.” Ela aponta, como um dos
grandes desafios, a melhoria do Ensino Médio. “Dobramos o investimento
por aluno nessa fase do ciclo escolar, mas não conseguimos reverter a
estagnação dos resultados em Matemática, por exemplo, ao contrário dos
anos iniciais do Ensino Fundamental, onde conseguimos grandes avanços
nos últimos anos”, diz.
Estima-se que apenas 5,2% dos alunos da rede pública terminam o
terceiro ano do Ensino Médio com os conhecimentos adequados na
disciplina. Situação similar se verifica no 9º ano do Ensino
Fundamental: apenas 22% dos alunos da rede pública demonstraram possuir
conhecimentos adequados em Português. Segundo o relatório divulgado na
terça-feira 25 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), os investimentos em educação no Brasil passaram de
3,5% do PIB em 200º para 5,6% em 2010 – a média dos países membros da
organização é de 6,3% do PIB. Ainda assim, o gasto com cada aluno do
Ensino Médio foi de US$ 2,5 mil, o que equivale a 28,5% do gasto que os
países desenvolvidos têm com seus estudantes na mesma série.
Saúde
Sem um sistema de saúde coerente para atender toda população, o País
ameaça reunir deficiências dos dois mundos, o da saúde privada e o da
saúde pública. Com um pouco mais de dinheiro no bolso, e a convicção de
que jamais serão bem atendidos na rede pública, um número cada vez maior
de famílias tornou-se cliente de planos privados de saúde capazes de
atrair as pessoas pelo baixo preço – e que pelo mesmo motivo não
consegue oferecer o atendimento prometido.
Num quadro que não será resolvido do dia para a noite, a saúde
recebeu duas boas notícias, nos últimos dias. Ao garantir 25% dos
royalties do petróleo a saúde, a Câmara destinou-lhe R$ 70 bilhões nos
próximos dez anos.
Num esforço para produzir efeitos rápidos, o governo está convencido
de que a saúde da população mais pobre, que reside longe dos centros
urbanos, pode melhorar, e muito, se tiver um médico por perto. Para
tanto, o Planalto decidiu comprar uma briga para trazer médicos
estrangeiros, mas mudou de tática. Irá, primeiro, levantar todos os
empregos disponíveis, onde ficam e o salário oferecido. Numa primeira
etapa, as vagas serão oferecidas aos médicos brasileiros. Os postos
restantes serão ocupados por estrangeiros interessados em mudar-se para o
País.
Transporte Público
Se tarifas fossem o único problema do transporte público, o problema
estaria bem encaminhado. Nos últimos dias, doze capitais reduziram o
preço do transporte e um número incalculável de municípios menores fez o
mesmo. A realidade é que faltam investimentos de fôlego, para criar um
sistema eficiente, com um mínimo de conforto para atrair cidadãos que,
na primeira oportunidade, preferem sentar-se no volante de seu
automóvel. Para Maurício Broinizi, coordenador executivo da Rede Nossa
São Paulo, vivemos, nesse âmbito, uma situação limite. “Nada contra o
direito de ter um carro, mas o problema é o uso intensivo sem que haja
uma alternativa.”
Quem esperava que a realização da Copa do Mundo de 2014 e das
Olimpíadas em 2016 poderia reverter esse quadro também se frustrou.
Conforme o TCU, até agora houve desembolso de apenas 27% dos valores já
contratados, que somam R$ 4,8 bilhões. A previsão de investimentos nessa
área é de 11,8 bilhões. “Em um determinado momento as autoridades
desistiram de fazer os investimentos em mobilidade e só se preocuparam
em fazer estádios”, afirma o engenheiro Jaime Waisman, professor da
Escola Politécnica da USP. “O que seria o legado desses eventos
simplesmente não vai acontecer.”
Diante da insatisfação, a presidenta Dilma Rousseff anunciou a
criação de um Conselho Nacional de Transporte Público e instou as
cidades a fazerem o mesmo – algumas, como São Paulo e Florianópolis já
possuem esse órgão. A proposta veio acompanhada de uma promessa: Dilma
prometeu disponibilizar R$ 50 bilhões para obras de mobilidade. O
esforço do Executivo foi acompanhado pelo Legislativo. A Câmara aprovou
na quarta-feira 26 a redução para zero do PIS/Pasep e do COFINS,
impostos que incidem sobre o transporte coletivo e podem ajudar na
redução das tarifas. A proposta segue para o Senado. Já nas cidades, a
preção por mais transparência surtiu efeito imediato. Em São Paulo, o
prefeito Fernando Haddad suspendeu a licitação que renovaria por mais 15
anos os contratos das empresas de transporte público da capital. O
valor da licitação é de R$ 46 bilhões. Quase ao mesmo tempo, a Câmara de
Vereadores aprovou a instalação de uma CPI para investigar o setor – o
mesmo aconteceu na cidade do Rio de Janeiro – o que pode ajudar a mapear
o encontro entre verbas de campanhas e interesses políticos.
Corrupção
Além da prisão de Natan Donadon, Legislativo e Judiciário tiraram da
gaveta medidas que dormitavam há anos. Proposição que transforma a
corrupção em crime hediondo também foi aprovada pelo Senado. A Câmara
votou o fim do voto secreto para cassação de mantados.