Começa a busca por mundos habitados
Por Salvador Nogueira
19/01/15 05:56
Uma descoberta épica acaba de ser feita pela missão K2, a
segunda fase de operações do satélite Kepler, da Nasa. Seria apenas mais
um planeta potencialmente similar à Terra, como tantos que já foram
anunciados nos últimos anos, não fosse por um detalhe: ele é o primeiro a
ser encontrado que permitirá a busca efetiva por sinais de vida em sua
atmosfera.
Concepção artística de planeta ao redor de estrela anã vermelha, como o recém-descoberto (Crédito: PHL/UPR)
Você pode se perguntar: mas por que os outros não permitiam isso? Qual o problema com
os oito mundos recentemente anunciados, ou o
Kepler-186f,
que fez manchetes em 2014? Em essência, esses planetas estavam
distantes demais para permitir o posterior estudo de suas atmosferas.
Esse não é o caso do planeta que recebeu a designação EPIC 201367065
d. Ele tem um diâmetro cerca de 50% maior que o da Terra e completa uma
volta em torno de sua estrela-mãe a cada 44,6 dias terrestres. Os dados
da missão K2 revelaram a presença de outros dois planetas, um com cerca
de 2,1 vezes o diâmetro terrestre, completando uma volta em torno da
estrela a cada 10 dias, e o outro com 1,7 vez o diâmetro da Terra e
período orbital de 24,6 dias.
A grande vantagem, contudo, é a distância que a estrela EPIC
201367065 guarda de nós — cerca de 150 anos-luz. Não é que esteja “logo
ali”, como diria o outro, mas é perto o suficiente para que possamos
aplicar a tecnologia atual para estudar diretamente a atmosfera desse
mundo. E isso, por sua vez, pode carregar pistas da existência de vida.
A BENESSE DO TRÂNSITO
Hoje em dia, é muito difícil observar diretamente a luz que emana de um
planeta fora do Sistema Solar. Algumas câmeras especiais já conseguem
fotografar planetas gigantes
em órbitas longas em torno de seus sóis, mas isso ainda não é possível
para planetas pequenos e rochosos em órbitas suficientemente próximas a
ponto de permitir que a água se mantenha em estado líquido na superfície
— condição aparentemente essencial para o surgimento e a manutenção da
vida.
Então, o único meio de estudar a atmosfera desses mundos é nos casos
em que eles “transitam” à frente de suas estrelas, com relação ao nosso
campo de visão. Assim, parte da luz da estrela atravessa de raspão a
atmosfera do planeta e segue até nós, carregando consigo uma
“assinatura” da composição do ar.
Pois bem. O satélite Kepler detecta planetas justamente medindo as
sutis reduções de brilho das estrelas conforme eles passam à frente
delas. Por um lado, isso limita brutalmente a quantidade de planetas que
podemos detectar, pois exige que o sistema esteja alinhado de tal forma
que esses mini-eclipses sejam visíveis daqui. (Estima-se que apenas 5%
dos sistemas planetários estejam num alinhamento favorável.) Por outro
lado, os planetas que descobrimos já são alvos naturais para estudos de
espectroscopia, a análise da tal “assinatura” na luz que passou de
raspão pela atmosfera.
O satélite Kepler detecta planetas observando trânsitos deles à frente de suas estrelas-mães. (Crédito: Nasa)
Acontece que a missão original do Kepler não era buscar mundos que
pudessem ser estudados assim. Quando ele foi projetado e lançado, a
quantidade de planetas conhecidos ainda não era tão expressiva, de forma
que o objetivo principal do satélite era obter descobertas suficientes
para formular um censo da distribuição dos planetas pelo Universo. Para
isso, a Nasa o apontou para uma única região do céu, um pequeno cantinho
que representa apenas 0,25% do total da abóbada celeste, mas que tinha
grande concentração de estrelas. Ele passou quatro anos monitorando
cerca de 150 mil estrelas ininterruptamente. O sucesso foi notável. O
Kepler já descobriu sozinho mais planetas que todos os outros esforços e
projetos que vieram antes dele. Mas um efeito colateral indesejável é
que a maioria desses planetas está a uma distância grande demais para
permitir esses estudos atmosféricos.
Na missão K2, contudo, a história é outra. Em tese, ela nem deveria
existir. Sua formulação foi motivada por um defeito no satélite Kepler,
que impediu que ele permanecesse mantendo seu apontamento preciso
exigido pela missão original. A Nasa acabou resolvendo a questão usando a
própria luz solar como um “apoio” extra para manter o telescópio
espacial firmemente apontado, mas com isso é preciso manter a espaçonave
sempre alinhada com o Sol, o que significa que o Kepler, conforme
avança em sua órbita, agora troca periodicamente a região do céu em
foco. São apenas 80 dias para cada região do céu escolhida. Além disso, a
precisão das observações diminuiu, de forma que agora a prioridade são
estrelas mais próximas — qualidade, em vez de quantidade. Na prática,
agora começamos a buscar de fato planetas que iremos estudar a fundo nos
próximos anos.
O que nos leva à estrela EPIC 201367065. Ela é uma anã vermelha, um
astro com cerca de metade do diâmetro do nosso Sol. Menos quente e
luminosa, portanto, o que significa que a chamada zona habitável fica
bem mais perto dela do que acontece no Sistema Solar. Segundo os
cálculos dos astrônomos, o terceiro planeta do sistema recebe
aproximadamente 50% mais radiação de sua estrela que a Terra ganha do
Sol. Se isso se traduz num planeta com temperatura amena, como o nosso,
ou num inferno escaldante, como Vênus, depende basicamente da composição
e da densidade da atmosfera desse mundo misterioso.
O JOGO JÁ COMEÇOU
E aí é que entra a parte interessante. Em vez de simplesmente especular
sobre isso, os astrônomos já podem colocar a mão na massa. E não só com o
planeta possivelmente habitável, mas com os outros dois, ligeiramente
maiores, nas órbitas mais internas. Seriam eles mais parecidos com
versões miniaturizadas de Netuno, o menor dos gigantes gasosos do nosso
Sistema Solar, ou estão mais para superterras, mundos essencialmente
rochosos? Os cientistas apontam em seu artigo, submetido para publicação
no “Astrophysical Journal”, que o Telescópio Espacial Hubble seria
capaz de analisar o espectro e verificar a presença de grandes
invólucros gasosos de hidrogênio nesses planetas, caso eles não tenham
grandes coberturas de nuvens na alta atmosfera.
E a coisa vai ficar melhor ainda a partir de 2018, quando a Nasa
lançar ao espaço o Telescópio Espacial James Webb. Ele será capaz de
detectar dados espectrais correspondentes a uma atmosfera similar à
terrestre. Por exemplo, se um desses mundos tiver uma atmosfera como a
nossa, onde predomina o nitrogênio, nós saberemos. Se ela contiver
grandes quantidades de dióxido de carbono, como é o caso de Vênus,
também.
Isso sem falar na medida mais natural a ser tomada desse sistema
planetário — a observação dos efeitos gravitacionais que os planetas
exercem sobre a estrela-mãe. Com as tecnologias atuais, já seríamos
capazes de detectar o bamboleio gravitacional realizado pela estrela
conforme ela é atraída para lá e para cá pelos planetas girando em torno
dela. E, com isso, saberíamos suas massas. Juntando essa nova
informação aos diâmetros, já medidos pelo Kepler, conheceríamos a
densidade. E, a partir dela, poderíamos inferir se estão mais para
planetas como a Terra ou mundos gasosos, muito menos densos.
“Ao nos permitir medir as massas e as condições atmosféricas de três
planetas pequenos num único sistema, a EPIC 201367065 representa uma
oportunidade empolgante para o teste de teorias de formação e evolução
planetária num único laboratório extra-solar”, escrevem os cientistas
encabeçados por Ian Crossfield, da Universidade do Arizona, nos Estados
Unidos.
Os astrônomos já têm o caminho todo mapeado. A ideia é que o K2,
assim como seu sucessor, o satélite TESS, que deve ser lançado em 2017,
descubra mais alvos promissores, como os do sistema EPIC 201367065.
Quando o James Webb for ao espaço, em 2018, terá uma lista considerável
de planetas para estudar — potencialmente centenas deles. Todos
interessantes, mas obviamente nem todos tão bons para a vida quanto a
Terra. Contudo, se, de toda essa rica amostra de mundos, apenas um tiver
uma atmosfera rica em oxigênio sem que esse gás possa ter sido
produzido em quantidade apreciável por processos não-biológicos (como é o
caso do nosso planeta), já teremos a certeza de que não estamos sós no
Universo.
Difícil imaginar uma época mais empolgante que esta em toda a história da espécie humana. Quem viver verá.