Hannan Abdalla: "As mulheres árabes não são vítimas passivas"
A jovem cineasta egípcia diz que a opressão das mulheres no Egito não tem causa religiosa e que é inútil criar ONGs de classe média para ajudá-las.
IVAN MARTINS
06/09/2013 07h00
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ÉPOCA – No seu filme há um momento quase surreal em que uma mulher de burca se põe a falar de forma agressiva e articulada contra os privilégios masculinos. Que conclusão se tira disso?
Hannan Abdalla – Aquela cena foi um choque também para as pessoas no Egito. Para mim, ela mostra que a situação das mulheres é mais complexa do que se imagina. A maneira como uma mulher se veste não traduz necessariamente o que ela pensa sobre a dominação masculina. Aquela senhora é obviamente uma pessoa muito religiosa, mas mesmo ela não acredita que a burca deva ser obrigatória. Diz que a usa porque deseja agradar a Deus. Mas ele me disse também – e isso não está no filme – que sem a burca se sente como um objeto. Não sabe se os homens a estão tratando bem por sua aparência ou por seu intelecto.
ÉPOCA – Ela é um feminista de burca, então?
Hannan – Sim, ela é feminista, mas de uma forma pervertida. Acredita que a burca é uma maneira de resistir contra a transformação das mulheres em objetos. Eu entendo como ela se sente, mas ela está errada. Não acho que cobrir-se seja um jeito de combater o machismo.
ÉPOCA – A senhora a viu sem burca, ela é muito bonita?
Hannan – Eu a vi sem burca, ela é bonita, mas não é essa a questão. No Egito você não precisa ser uma supermodelo para atrair esse tipo de atenção masculina. Em nenhum lugar no mundo, na verdade. Eu perguntei a ela se tiraria a burca caso o tratamento das mulheres no Egito fosse diferente do que é. Ela respondeu que talvez usasse apenas um lenço, por respeito religioso.
ÉPOCA – A senhora pode andar pelas ruas do Cairo e fazer o seu trabalho sem ser incomodada pelos homens?
Hannan – Existem algumas limitações. O espaço pessoal na sociedade egípcia é considerado público. É preciso lutar contra isso o tempo todo. Eu poderia usar no Cairo uma saia e uma blusa, como estou usando em São Paulo, mas ouviria um monte de bobagens. Mas se eu me vestisse com roupas largas ouviria as mesmas coisas. É preciso estar preparada para isso. No fundo, é uma questão de quanto você aguenta de abuso. Dependendo de onde você vai, é bom pensar mais sobre as roupas. Um bairro popular, por exemplo. Mas eu nunca cubro a cabeça, o que não é um grande problema no Egito. Como parte da população é cristã, as pessoas estão acostumadas.
ÉPOCA – A senhora se sente segura nas ruas do seu país?
Hannan – Eu não sinto que a minha segurança esteja ameaçada. Sofro abuso, mas isso é outra coisa. Ouço coisas como “Gostosa”, “Suas roupas são uma vergonha”, “Posso ver o seus seios” ou “Cubra esse cabelo”. Às vezes pode ser ainda pior. Mesmo que eu esteja acompanhada por um homem, acontece, embora menos. Mas, ainda que seja muito óbvio no Egito, esse tipo de abuso contra as mulheres acontece no mundo inteiro. Em toda parte você tem a sensação de que a rua pertence aos homens. Eu não gostaria de tratar o que acontece no Egito como uma coisa excepcional.
ÉPOCA – Tendo nascido na Inglaterra e sido criada lá, como compara a educação feminina nos dois países?
Hannan – Eu não tive uma educação tipicamente britânica ou egípcia. Meu pai não é controlador e eu fui ensinada a fazer tudo que meu irmão fazia. Fui estimulada a ser tão independente quanto ele. Tínhamos brigas sobre os limites da minha liberdade, mas isso acontece em toda parte. Todas as culturas que eu conheço têm certo componente patriarcal, de controle masculino.
ÉPOCA – Acredita que seria a mesma pessoa se tivesse sido criada no Cairo?
Hannan – Gosto de pensar que eu seria a mesma pessoa, porque minha família tem valores muito fortes. Mas eu teria que lutar mais, e contra coisas diferentes. No Egito seria mais difícil defender alguns dos meus valores fundamentais, como a independência. Lá eu teria que lutar contra o resto da sociedade, que não concorda, necessariamente, com os valores da minha família. Mesmo em coisas simples, como a que horas você sai de casa e quando volta, há pressão da comunidade. A santidade da reputação é uma coisa terrivelmente importante na sociedade egípcia. Não seria fácil, mas eu tenho muitas amigas que cresceram no Egito e têm ideias muito parecidas com as minhas a respeito do que significa ser uma mulher. É possível, mas as mulheres têm de se esforçar mais.
ÉPOCA – Uma das mulheres que você entrevistou no filme diz que a tradição é culpada pela maneira como se tratam as mulheres. É tradição ou religião?
Hannan – O que ela está tentando dizer, da forma como eu entendi, é que a tradição diz que as mulheres precisam de um homem para protegê-las. Esse tipo de valor está interiorizado nas pessoas. Isso para mim é muito maior que a religião. Nem acho que a religião seja parte disso. O dogma religioso e a forma conservadora de ver a sociedade estão conectados, mas isso não significa que a religião islâmica seja intrinsicamente opressiva. Os homens que me dizem coisas nas ruas do Cairo podem ser cristãos ou muçulmanos. A maioria deles nem deve ser religiosa. Não é uma peculiaridade islâmica. Na Itália fascista e católica também havia ideias muito conservadoras sobre a família e o que significa ser mulher.
ÉPOCA – Sim, mas isso foi nos anos 30...
Hannan – Não importa quando aconteceu. O que não se pode aceitar é a ideia de que há uma religião intrinsicamente mais conservadora e mais repressora do que as outras. Isso significa singularizar o Islã em relação às demais religiões, e tem um efeito muito negativo. É como se você atacasse diretamente o que as pessoas são, a crença fundamental delas.
ÉPOCA – O que a senhora tem em mente quando diz que deseja mudar a imagem das mulheres do seu país?
Hannan –Não gostaria que elas fossem vistas como vítimas oprimidas. Elas são lutadoras, elas resistem. São mulheres fortes e corajosas. Gostaria que meu filme ajudasse a nos tirar da discussão em que as mulheres aparecem apenas como vítimas sem esperança. Não é o caso.
ÉPOCA – A opressão feminina é o pior problema do seu país?
Hannan – A situação das mulheres é um problema sério do Egito, mas não pode ser separado do resto dos problemas sociais. Tem de ser incluída na agenda geral da revolução. Isso não quer dizer que eu seja contra os movimentos femininos. Apenas acho que eles têm de atuar em conjunto com os demais. Não adianta criar ONGs de classe média para defender os direitos das mulheres. Isso nunca funcionou no Egito. Só veremos os movimentos femininos crescerem no Egito quando houver mais justiça social e mais integração das mulheres ao mercado formal de trabalho.
ÉPOCA – Os problemas das mulheres egípcias são diferentes dos problemas das mulheres em outros países árabes?
Hannan – Somos diferentes dos outros países árabes porque a nossa pobreza é maior. Somos mais pobres que o Marrocos, que a Tunísia, que a Arábia Saudita. Nossas mulheres querem estabilidade, querem que seus filhos tenham emprego e possam casar e montar uma família. São necessidades sócio-econômicas básicas. A maioria das mulheres está em famílias de trabalhadores pobres. A prioridade delas é ter trabalho e independência financeira para a família. Há também questões relativas ao divórcio e leis de família. Muitas mulheres gostariam de deixar seus maridos, mas são forçadas pelas famílias a permanecer em casa. Elas não têm meios de se manter sozinhas, mesmo que trabalhem mais que os maridos. Se elas tivessem emprego seria diferente.
ÉPOCA – Como a Irmandade Muçulmana conseguiu o voto das mulheres para vencer as eleições em seu país?
Hannan – O que aconteceu no Egito é o que acontece em toda parte – ganhou a eleição quem tinha mais dinheiro e mais organização. Eles tinham um logo bonito, cantavam belas canções e fizeram as pessoas pensar que eram simpáticos. Eles manipularam a religiosidade das pessoas para sugerir que eles, a Irmandade, representavam a verdadeira identidade do povo egípcio. Quando eles tomaram o poder, ficou claro que o povo egípcio não se identificava com o fascismo religioso que eles representam.
ÉPOCA – De qualquer forma as mulheres, votaram pela agenda social reacionária que a Irmandade defendia...
Hannan – Não foi isso que aconteceu. Eles nunca deixaram claro o que pretendiam fazer. Diziam, por exemplo, que as mulheres não deveriam trabalhar tanto. Que a família tinha de estar no centro da sociedade. Que havia divórcios demais. Se você lesse nas entrelinhas, perceberia uma agenda claramente conservadora, mas as intenções deles não eram claras. Diziam que a mulher deveria trabalhar em casa e que, no futuro, quando o país fosse mais próspero, as mulheres não precisariam trabalhar. Como o Egito é um país muito patriarcal, ninguém estranha essas coisas. Não é um escândalo. O essencial é que eles prometeram “um Egito para todos”, um governo de inclusão. Quando eles tentaram tomar todo o poder, as pessoas se revoltaram. Ficou claro que eles eram mentirosos.
ÉPOCA – Por que você escolheu mudar-se para o Egito em vez de viver uma vida mais fácil em Londres?
Hannan – Não sinto que a minha vida no Egito seja incômoda ou difícil. Na verdade, me sinto privilegiada por estar vivendo este momento único na história do país. Nem imagino como seria voltar para a Inglaterra. Eu não entenderia o processo da revolução se não estivesse no Cairo, tomando parte, ajudando na mudança. Estes foram os dois anos e meio mais importantes da minha vida, sem sombra de dúvida. Aprendi muito e a minha visão política mudou.
ÉPOCA – O que você teve de sacrificar pessoalmente para filmar a revolução?
Hannan – Meus pais ficaram em Londres. Logo depois que eu viajei se descobriu que meu pai estava muito doente. Ele teve de fazer um transplante de fígado no ano passado e voltei para estar uns meses com ele. Foi difícil ficar longe nessa situação. Meu namorado também está em Londres. Agora temos um relacionamento por Skype
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