14/09/2013
às 9:00 A pré-história é uma tremenda história
Um curioso artigo de Jennifer Vanderbes na revista The Atlantic (aqui, em inglês),
intitulado “O argumento evolutivo em favor da ficção de qualidade”,
ganha de saída minha simpatia. Como se sabe, vivemos tempos difíceis
para a tal ficção de qualidade, um tempo em que alguns de seus
ex-aliados se atarefam em graves demonstrações teóricas de que a ficção
está esgotada, fetichizada, transformada em mercadoria, e de qualquer
modo a ideia de qualidade nunca passou de miragem ideológica, certo?
Num quadro tão hostil, qualquer palavra endereçada no sentido contrário é bem-vinda para quem se recusa, talvez por pura teimosia, a abandonar a ideia de que a literatura expressa algo de vital sobre o mundo e a experiência humana que nenhuma outra linguagem pode expressar. Seja lá o que for esse algo. Convenhamos: parece melhor que a encomenda uma defesa darwinista do poder da contação de histórias que começa ao redor de uma fogueira do Pleistosceno, 45 mil anos atrás, como se vê na ilustração acima, de Viktor M. Vasnetsov, que acompanha o artigo.
Na verdade, o que Vanderbes faz, de um ponto de vista da psicologia evolutiva, não é muito diferente de outras defesas do papel estruturante das narrativas na forma como os seres humanos se relacionam consigo mesmos, com os outros e com o mundo. Entre aqueles bibliófilos que se recusam a assinar o atestado de óbito da literatura, muitos vêm dizendo coisas parecidas nos últimos anos.
Por exemplo: que ao ouvir histórias sobre como pessoas parecidas conosco – ou muito diferentes de nós – se comportaram em tal e tal situação, adquirimos uma sabedoria que, não sendo advinda da experiência, pode aprimorar experiências futuras. Tornando-as, digamos, menos perigosas, caso a história verse sobre a caça ao mamute e contenha uma nota triste e edificante sobre como um jovem afoito fez besteira e morreu pisoteado.
Isso para não mencionar o papel que as histórias transmitidas oralmente cumpriram ao fixar na memória coletiva o conhecimento acumulado por gerações sobre fatos da natureza ou da mitologia. Ou a capacidade única que as narrativas têm de desenvolver em nós a empatia, a compreensão do outro, do diferente, sem a qual só existiria a barbárie sobre a terra. Etc.
O único ponto menos batido em que Vanderbes toca é também, provavelmente, o mais polêmico: a suposta vantagem reprodutiva de que teriam passado a gozar os melhores contadores de história da pré-história. Tietes ao redor da fogueira, de queixo caído e coração palpitante diante da primeira metáfora a ser enunciada no planeta, exigem do leitor uma boa vontade maior do que ele talvez esteja disposto a ter.
Ou não? Na parte mais suculenta do artigo, Vanderbes garante que “uma variação que aumente a prole em apenas 1% pode se espalhar por 99,9% da população em 4 mil gerações”. Um por cento? Pensando bem, uma vantagem competitiva tão modesta talvez possa ser concedida àquele parlapatão de 45 mil anos atrás junto à sua concorrida fogueira, precursora da Flip.
Com seu tom de especulação leve, quase leviana, a melhor defesa da fabulação que o simpático artigo acaba por lograr é, acredito, involuntária. Ele também só quer contar uma boa história.
Num quadro tão hostil, qualquer palavra endereçada no sentido contrário é bem-vinda para quem se recusa, talvez por pura teimosia, a abandonar a ideia de que a literatura expressa algo de vital sobre o mundo e a experiência humana que nenhuma outra linguagem pode expressar. Seja lá o que for esse algo. Convenhamos: parece melhor que a encomenda uma defesa darwinista do poder da contação de histórias que começa ao redor de uma fogueira do Pleistosceno, 45 mil anos atrás, como se vê na ilustração acima, de Viktor M. Vasnetsov, que acompanha o artigo.
Na verdade, o que Vanderbes faz, de um ponto de vista da psicologia evolutiva, não é muito diferente de outras defesas do papel estruturante das narrativas na forma como os seres humanos se relacionam consigo mesmos, com os outros e com o mundo. Entre aqueles bibliófilos que se recusam a assinar o atestado de óbito da literatura, muitos vêm dizendo coisas parecidas nos últimos anos.
Por exemplo: que ao ouvir histórias sobre como pessoas parecidas conosco – ou muito diferentes de nós – se comportaram em tal e tal situação, adquirimos uma sabedoria que, não sendo advinda da experiência, pode aprimorar experiências futuras. Tornando-as, digamos, menos perigosas, caso a história verse sobre a caça ao mamute e contenha uma nota triste e edificante sobre como um jovem afoito fez besteira e morreu pisoteado.
Isso para não mencionar o papel que as histórias transmitidas oralmente cumpriram ao fixar na memória coletiva o conhecimento acumulado por gerações sobre fatos da natureza ou da mitologia. Ou a capacidade única que as narrativas têm de desenvolver em nós a empatia, a compreensão do outro, do diferente, sem a qual só existiria a barbárie sobre a terra. Etc.
O único ponto menos batido em que Vanderbes toca é também, provavelmente, o mais polêmico: a suposta vantagem reprodutiva de que teriam passado a gozar os melhores contadores de história da pré-história. Tietes ao redor da fogueira, de queixo caído e coração palpitante diante da primeira metáfora a ser enunciada no planeta, exigem do leitor uma boa vontade maior do que ele talvez esteja disposto a ter.
Ou não? Na parte mais suculenta do artigo, Vanderbes garante que “uma variação que aumente a prole em apenas 1% pode se espalhar por 99,9% da população em 4 mil gerações”. Um por cento? Pensando bem, uma vantagem competitiva tão modesta talvez possa ser concedida àquele parlapatão de 45 mil anos atrás junto à sua concorrida fogueira, precursora da Flip.
Com seu tom de especulação leve, quase leviana, a melhor defesa da fabulação que o simpático artigo acaba por lograr é, acredito, involuntária. Ele também só quer contar uma boa história.
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