N° Edição: 2270
| 17.Mai.13 - 20:45
| Atualizado em 19.Mai.13 - 18:47
A farsa boliviana
Gravação comprova que tio e advogado de
Kevin Beltrán Espada, morto por um sinalizador no jogo Corinthians e
San José há três meses, quer dinheiro para inocentar, em depoimento, os
12 torcedores brasileiros presos na Bolívia
Rodrigo Cardoso
Ouça a gravação:
Em frente ao hotel Eden, na pequena Oruro, cidade a 3.700 metros de
altitude, distante 230 quilômetros da capital boliviana, La Paz, há uma
arborizada praça, a Plaza 10 de Febrero. Lá, em uma tarde ensolarada do
mês passado, o advogado Jorge Ustarez Beltrán, figura de renome na
cidade graças aos serviços prestados a senadores e ministros da Bolívia,
colocou as cartas na mesa para o advogado brasileiro Sérgio de Moura
Ribeiro Marques, contratado pelas famílias para defender os 12
brasileiros presos há três meses em Oruro. Os torcedores foram apontados
como responsáveis pela morte do adolescente boliviano Kevin Beltrán
Espada, de 14 anos, alvejado por um sinalizador quando assistia a uma
partida de futebol entre Corinthians e San José em fevereiro. “Estou
consciente de que os 12 não são culpados”, disse Beltrán, tio de Kevin
que assessora juridicamente a família, ao advogado brasileiro.
Na praça, a conversa entre os advogados se desenrolou por cerca de
uma hora. Nela, o tio de Kevin insiste para que ele e o colega
brasileiro trabalhem juntos para libertar os torcedores do Corinthians.
Dias depois, em mais uma hora de diálogo, agora em um restaurante,
Beltrán abre o jogo de vez e pede dinheiro para contribuir com a soltura
dos brasileiros. “Doutor, te digo com muita sinceridade. Se estamos
buscando libertar os 12 torcedores, o caminho não é esse que estamos
seguindo. Não é pela pressão política, não é um tema diplomático”,
afirma. “Se não trabalharmos juntos, não iremos solucionar nem o
problema da família de Kevin nem libertar os 12. Praticamente, o que
propomos a vocês é acabar de vez com esse processo. Os familiares (do
adolescente morto) buscam uma reparação material, civil, e isso poderia
ser assumido pelo Corinthians.” Ou seja, ele deixa claro que o caminho a
ser trilhado para a libertação dos torcedores não é o da Justiça, mas o
do dinheiro.
ISTOÉ teve acesso aos diálogos mantidos nos dois encontros e que
foram gravados por Marques sem que Beltrán soubesse. Neles, os dois
advogados costuram o seguinte acordo: o tio de Kevin, segundo Marques,
produziria uma petição na qual declararia, entre outros pontos, a
inocência dos 12 brasileiros presos pela morte de Kevin. E – mais
importante – revelaria que o adolescente boliviano encontrava-se de
costas para o campo quando foi alvejado pelo sinalizador. Além de
Beltrán, Beymar Jonathan Trujillo Beltrán, primo de Kevin e única
testemunha ouvida (em uma declaração de apenas cinco linhas) sobre a
morte dele, assinaria o documento que seria incorporado ao processo de
investigação. Por ser uma declaração contundente de uma nova testemunha
intimamente ligada ao adolescente morto, seria aberta uma grande
possibilidade de libertação para os brasileiros. Apesar de não ter se
pronunciado legalmente ainda, o tio de Kevin estava no jogo Corinthians e
San José.
A contrapartida do testemunho custaria US$ 220 mil – cerca de R$ 400
mil – a serem entregues à família de Kevin (conforme consta da anotação
manuscrita por Beltrán acima) e que deveriam ser levantados pelo
advogado Marques em 20 dias, assim que ele retornasse ao Brasil. “Esse é
o momento adequado (para solucionar o caso), doutor. Mais para a
frente, fica complicado... uma vez que se produz a acusação, aí não
poderemos introduzir nenhuma prova que não as que o investigador já
tenha determinado”, insiste o advogado Beltrán, como revelam as
gravações (leia mais à pág. 74). A confissão sobre a real posição de
Kevin na arquibancada poderia mudar o rumo da investigação e culminar
com a libertação dos brasileiros, de acordo com o perito Ricardo Molina,
da Universidade de Campinas. “Considerando-se que os torcedores
corintianos estavam à direita de Kevin, se for verdade que o adolescente
boliviano estava de costas para o campo, seria impossível que o
sinalizador que entrou pelo olho direito e saiu pela jugular esquerda
dele partisse da posição onde se encontrava a torcida brasileira”, diz
ele.
REUNIÃO
À esq., o presidente do Corinthians, Mário Gobbi, com familiares dos presos.
Eles não têm ajuda financeira do clube para resolver a questão jurídica.
Abaixo, o advogado Sérgio Marques (em destaque) e o procurador
boliviano Alfredo Canavari (no centro) durante oitiva do menor H. A. M.
De volta ao Brasil, o Corinthians foi comunicado sobre a
possibilidade de fechar o acordo com o tio de Kevin. “Fui informado
sobre o fato. Mas o Corinthinas não dará dinheiro em troca de um
depoimento do tio”, diz Luís Bussab, diretor do departamento jurídico do
clube. O advogado Marques também comunicou o fiscal da promotoria de
Oruro, Alfredo Canavari. O promotor boliviano esteve no Brasil no início
do mês para uma oitiva com o menor brasileiro H. A. M., que assumiu ter
lançado o sinalizador que aparece em algumas imagens na direção dos
torcedores bolivianos. “Canavari concordou que eu fizesse o acordo. Ele
me disse que, se fosse fechado, o ajudaria a tirar a pressão que vem
sofrendo (das autoridades bolivianas)”, afirma Marques.
O depoimento contundente de um parente de Kevin em troca de dinheiro
para a família do adolescente morto, juridicamente falando, pode até não
significar a soltura imediata dos torcedores. Mas a revelação de que
familiares da vítima tentam negociar a morte de Kevin, além de chocante,
demonstra desinteresse em que se ache o verdadeiro culpado. “Um sujeito
que propõe um acordo e negocia a imagem do parente morto antes de os
fatos serem esclarecidos mostra que ele pode ter se omitido em relação à
verdade anteriormente”, diz o advogado dos detentos brasileiros. Na
gravação, o tio de Kevin diz não ser preciso tornar público o acordo
financeiro. “Não necessito que o Corinthians diga que está compensando a
família civilmente... tem de fazer um documento de solidariedade,
comovido (com a situação financeira dos pais de Kevin), assumindo sua
responsabilidade social e (os) repararia”, sugere Beltrán. Procurado por
ISTOÉ e questionado se em alguma oportunidade chegou a pedir dinheiro
em nome da família de Kevin a algum emissário dos torcedores presos, o
tio do adolescente boliviano respondeu: “Formalmente, não.”
Marques não conseguiu avançar na negociação dos recursos com o
Corinthians ao retornar ao Brasil. Pelo contrário, diz que passou a
sofrer pressão política por parte do governo brasileiro e do clube
paulista para que o escritório Maristela Basso advogados, do qual é
sócio, fosse afastado do processo. É o que ele afirmou em entrevista
exclusiva à ISTOÉ online na sexta-feira 10: “Querem que nós sejamos
destituídos do caso e o governo colha o mérito da possível soltura dos
torcedores.” A maioria dos familiares, porém, é contra a saída do
advogado. Uma mãe e uma avó de um dos presos disseram que hipotecariam
suas casas, se preciso fosse, para pagar os honorários do escritório. Os
recursos passaram a ser bancados via empréstimos às famílias pela
torcida organizada Gaviões da Fiel, mas por conflitos nos rumos da
defesa os pagamentos cessaram.
Membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAB/SP, o advogado Sérgio
de Moura Ribeiro Marques, ex-professor da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (USP), aceitou trabalhar para os familiares
dos presos gratuitamente por viver um drama semelhante. Pai solteiro de
Tales Porchat de Moura Ribeiro, 11 anos, ele possui a guarda do filho,
mas há cerca de três anos concordou com a vontade do garoto de viver um
breve período com a mãe, no interior de São Paulo. Desde então, Marques
diz sofrer alienação parental e não consegue ter contato com Tales. No
dia em que pediu ao pai para ir morar com a mãe, o menino revelou que
havia decidido ser corintiano. Marques disse às famílias que sabe quanto
é dolorido ter um filho longe e pediu um pagamento inusitado. Ao final
do processo, quer que cada torcedor diga ao garoto: “Obrigado, Tales,
pois seu pai ajudou a nos tirar de uma situação difícil e ele o fez
porque o ama muito.”
As sérias divergências na condução do caso dos corintianos presos em
Oruro podem protelar – e até mesmo complicar – uma possível libertação
deles. Na oitiva com o adolescente H. A. M., realizada no início do mês
no consulado boliviano em São Paulo, o advogado do menor, Ricardo
Cabral, que também trabalha para a Gaviões, não queria que o seu cliente
respondesse ao procurador boliviano se sabia onde o sinalizador
disparado por ele teria caído, segundo o advogado Marques. Cabral
defende a tese de que o menor brasileiro seria o responsável pelo
disparo do sinalizador que alvejou o adolescente boliviano. Porém, usar
H. A. M. como bode expiatório pode ser um tiro no pé. “A lei penal da
Bolívia prega que uma pessoa que tenha participado de um crime, mesmo
que não intencionalmente, é julgada como cúmplice”, diz Marques. Ou
seja, apenas o fato de um dos corintianos carregar a mochila onde estava
o sinalizador, mesmo não sabendo seu conteúdo nem conhecendo H. A. M.,
já seria indício de cumplicidade aos olhos das autoridades locais.
Para o procurador de Justiça e deputado estadual Fernando Capez, que
participou da oitiva no consulado boliviano, há dúvida quanto à
trajetória do sinalizador disparado pelo adolescente brasileiro e não é
possível afirmar que aquele artefato acertou mesmo Kevin. “A
investigação é uma vergonha, não prova nada”, diz ele, que se diz
indignado com a postura do Itamaraty. “Sinto que eles estão omissos, não
fazem nada de concreto. Tem de fazer pressão diplomática.” Procurado
por ISTOÉ, Cabral, o advogado do menor brasileiro, preferiu não se
manifestar. Na oitiva, depois de muita insistência, H. A. M. informou
que o seu sinalizador teria caído na área verde da arquibancada, a mesma
onde ele se encontrava, só que mais adiante. Os assentos do estádio
Jesús Bermúdez, em Oruro, estão divididos em três faixas: a mais perto
do campo é verde, depois vem a amarela e por fim a vermelha – Kevin
estava nesta última. Se isso puder ser comprovado, o depoimento dado
pelo menor brasileiro ao procurador boliviano o isenta da culpa da morte
de Kevin e, por tabela, os 12 torcedores detidos. “Aquele vídeo que
mostra um sinalizador sendo lançado da torcida corintiana não prova
nada, nem mesmo que o disparo foi feito pelo menor brasileiro. Se estão
usando o vídeo como prova, é chute”, diz o perito Molina.
SEM PRAZO
O ministro Antonio Patriota, do Itamaraty:
morosidade do governo para libertar os brasileiros
Se o projétil que acertou o olho direito de Kevin e saiu pela sua
jugular esquerda partiu da posição onde H. A. M. se encontrava no
estádio, Kevin teria de estar agachado e com a cabeça levemente virada
para a direita, de acordo com Molina (leia mais no quadro ao lado).
Segundo o perito, esta seria a única possibilidade, considerando-se a
posição do autor e da vítima, que estava quase protegida por uma
tribuna. “É possível que isso tenha acontecido? É. É seguro que tenha
ocorrido? Não. Se Kevin estivesse olhando para o campo ou para cima, o
projétil teria de vir do alto”, diz Molina. “Não existe exame de
necropsia para saber a trajetória do projétil na cabeça da vítima e não
se sabe que tipo de sinalizador foi disparado, a força de propulsão e o
curso que ele faz. A posição da cabeça do Kevin é determinante para
saber a trajetória do sinalizador que o acertou. Não tem como resolver
esse caso apenas com os elementos que existem no momento.”
Em resumo, o caso dos brasileiros presos na Bolívia não tem solução
técnica. Sem ela, fica a dúvida sobre a autoria do disparo do
sinalizador que matou Kevin. E, se não há como provar a culpa dos 12
torcedores do Corinthians, eles têm de deixar a prisão em Oruro. Passou
da hora de o governo brasileiro arregaçar as mangas de verdade e, livre
de interesses paralelos, priorizar uma solução rápida para a prisão
arbitrária de 12 de seus cidadãos que, na Bolívia, vivem dias de
criminosos sem sequer terem sido acusados legalmente.