N° Edição: 2270
| 17.Mai.13 - 20:45
| Atualizado em 19.Mai.13 - 18:52
Dono de um coração reconhecidamente frágil, o ex-presidente da
República João Goulart era o terror de qualquer cardiologista. Exilado
na Argentina e no Uruguai, depois de deposto pelo golpe militar de 1964,
Jango cultivava péssimos hábitos alimentares e teimava em contrariar
todas aquelas recomendações médicas que prezam pelo bom funcionamento do
sistema cardiovascular. Mesmo após se submeter a um cateterismo em
1969, razão pela qual passou a tomar diariamente um remédio sublingual –
vasodilatadores que variavam entre Isordil e Carangor –, Goulart
comia toda manhã um bife com ovo frito, combinação considerada uma bomba
calórica para quem já ultrapassara os limites aceitáveis de colesterol.
Viciado em cigarros, de preferência os da marca uruguaia Nevada, o
ex-presidente ainda fumava dois maços por dia, rotina altamente
contraindicada para quem convive com problemas cardíacos. Por todos
esses motivos, o infarto fatal sofrido por Jango, aos 57 anos, na
madrugada abafada do dia 6 de dezembro de 1976, em Mercedes, na
Argentina, não surpreendeu a belíssima esposa, Maria Tereza Goulart.
Jango dormia ao lado da mulher na estância La Villa, depois de comer
churrasco de ovelha e beber uma xícara de chá, quando seu coração parou
por volta das 2h45 e não voltou a funcionar mais. “Percebi que ele
estava respirando de maneira esquisita. Gritei Jango, Jango, mas ele já
não respondia”, contou Tereza em recente entrevista. Na ocasião, a
família descartou a necessidade de autópsia. O clínico-geral, buscado em
Corrientes – município situado a 15 km de Mercedes –, examinou o corpo e
assinou o atestado de óbito: “Causa mortis: enfermedad”. Trinta e seis
anos depois, porém, em uma decisão inédita na história do País, a
Comissão Nacional da Verdade resolveu exumar, a pedido da família, o
corpo do ex-presidente para elucidar as circunstâncias de sua morte. A
exumação irá ocorrer no Cemitério Jardim da Paz, localizado no município
gaúcho de São Borja, onde Jango está enterrado, e contará com a
participação de peritos argentinos, uruguaios e russos, além de
especialistas da Cruz Vermelha. A iniciativa foi motivada pelas
suspeitas surgidas, desde a década de 1980, de que Jango teria sido
envenenado em meio à Operação Condor – aliança entre órgãos de repressão
política da Argentina, Bolívia, do Chile, Uruguai, Paraguai e Brasil
destinada a espionar, prender e até eliminar inimigos do regime.
Uma farta documentação do antigo SNI e de ministérios do Interior, da
Defesa e das Relações Exteriores do Uruguai intrigou a mulher, o filho,
João Vicente, e o neto, Cristopher Goulart, inicialmente céticos quanto
a um possível assassinato de Jango. Os documentos, anexados à petição
com o pedido da família pela exumação dos restos mortais de João
Goulart, mostram que o ex-presidente passou a ser vigiado
permanentemente pelos serviços secretos dos EUA, do Brasil e Uruguai
desde o momento em que deixou o Brasil. A papelada relata com minúcias a
vida particular de Jango. A principal fonte das informações seria uma
agente infiltrada pelos serviços de inteligência uruguaios dentro da
casa do presidente, a empregada doméstica Margarita Suárez. A partir das
detalhadas informações fornecidas por ela, os serviços secretos que
vigiavam Jango sabiam, por exemplo, que remédios ele tomava. “Há
elementos concludentes que Jango possa ter sido vítima da Operação
Condor”, diz Rosa Cardoso, integrante da Comissão da Verdade responsável
pelo processo de exumação.
Além de espionado, Goulart sofria constantes ameaças. Em agosto de 1973, seu escritório em Buenos Aires foi invadido, mas o imóvel estava vazio. Em recente depoimento a jornalistas do PDT, Maria Tereza contou que a família recebia telefonemas anônimos. “Uma vez ouvi de um homem: ‘Sai daí porque daqui a pouco nós vamos chegar e levar você e seus filhos para o fim do mundo!’”O cineasta Silvio Tendler, diretor do documentário Jango, de 1984, revela ter ouvido de funcionários do hotel Liberty, onde o ex-presidente se hospedava em Buenos Aires, que, quando Goulart ligava o carro, todos se afastavam. “Tinham medo de bomba”, diz Tendler.
A expectativa da Comissão da Verdade é que possíveis fibras capilares
encontradas nos restos mortais do ex-presidente possam guardar
vestígios de cafeína, atropina, escopolamina e digoxina. Os elementos
podem ser letais, dependendo da dosagem e do perfil de quem ingeri-los.
De acordo com a Polícia Federal, se for encontrado ao menos um grama de
cabelo, a análise toxicológica poderá ter sucesso. Mesmo assim, ainda
pairam dúvidas sobre se a exumação será conclusiva. Para o bioquímico
Lenine Alves de Carvalho, toxicologista e consultor da Anvisa, não há
100% de certeza de êxito. “Por isso, está havendo todo o cuidado e
estudo para um plano bem-feito”, diz. O fato de o caixão não ter sido
enterrado pode ajudar, segundo Lenine. “Está numa gaveta, no jazigo da
família Goulart. É positivo para ter um laudo conclusivo, porque evita
contaminações, cruzamento de componentes da terra com os restos
mortais.” O médico Odil Pereira, última pessoa a ter contato com o
cadáver no velório, revela otimismo. “Minha esperança é de que as gazes e
os algodões que coloquei nos orifícios contenham algum material para
exame”, afirmou. Independentemente do desenlace, o esforço para elucidar
as razões da morte do ex-presidente deposto num dos períodos mais
conturbados da política nacional é altamente louvável. Se forem
dirimidas as dúvidas sobre a morte de Jango, estaremos, sem dúvida,
preenchendo uma lacuna importante de nossa história.
Os segredos no túmulo de Jango
A exumação de João Goulart, decidida pela Comissão da Verdade, pode dirimir de uma vez por todas, 36 anos depois, as dúvidas sobre a morte do ex-presidente deposto em 1964
por Sérgio PardellasAlém de espionado, Goulart sofria constantes ameaças. Em agosto de 1973, seu escritório em Buenos Aires foi invadido, mas o imóvel estava vazio. Em recente depoimento a jornalistas do PDT, Maria Tereza contou que a família recebia telefonemas anônimos. “Uma vez ouvi de um homem: ‘Sai daí porque daqui a pouco nós vamos chegar e levar você e seus filhos para o fim do mundo!’”O cineasta Silvio Tendler, diretor do documentário Jango, de 1984, revela ter ouvido de funcionários do hotel Liberty, onde o ex-presidente se hospedava em Buenos Aires, que, quando Goulart ligava o carro, todos se afastavam. “Tinham medo de bomba”, diz Tendler.
João Goulart temia por sua vida. Em 1973,
três anos antes de morrer, em carta enviada aos filhos que moravam em
Londres, o ex-presidente manifestou o desejo de se mudar para Paris. Mal
sabia Jango que, enquanto escrevia a carta, ele era monitorado pelo
agente uruguaio Mario Neira Barreiro. O uruguaio é o autor da principal
denúncia sobre o assassinato do ex-presidente. Ele está detido desde
2003 na Penitenciária de Charqueadas, no Rio Grande do Sul, por assalto a
banco e tráfico de armas. Sob o codinome Tenente Tamuz, pertenceu ao
grupo Gama, do serviço de inteligência uruguaio. De acordo com Barreiro,
ele espionou Jango de 1973 até o dia de sua morte. Segundo ele, João
Goulart teria sido envenenado com um tipo de cloreto desidratado
transformado em comprimido e colocado em meio aos medicamentos que ele
tomava para o coração. O veneno seria capaz de acelerar o fluxo
sanguíneo, provocando hipertensão. Horas depois da ingestão, leva a um
derrame ou a um infarto. O responsável pela adulteração dos remédios de
Jango, segundo Barreiro, teria sido Héctor Rodríguez, um agente
argentino. Há, no entanto, contradições em seus depoimentos prestados
desde 2002. A um colegiado da Câmara, afirmou que o frasco havia sido
trocado. Em entrevista à imprensa, ele sustentou que vários comprimidos
foram misturados a diversos frascos. Em conversa com o filho de Jango,
João Vicente, disse que uma cápsula foi incluída. O embaixador e
cientista político Moniz Bandeira, que esteve com Jango no Uruguai e na
Argentina, classifica a versão de Barreiro de “charlatanice”. “Podem até
pesquisar. O que não é admissível é apresentar como verdade uma versão
que não pode ser comprovada por documentos”, questiona Moniz. A riqueza
de detalhes sobre o cotidiano de Jango, apresentada no depoimento do
uruguaio Mario Barreiro, porém, impressionou a família. “Sempre achei
que meu marido morreu de forma natural, mas, depois de anos de
falatório, nosso pensamento vai se transformando. Agora, já tenho
dúvidas se Jango teria morrido mesmo de infarto”, disse a viúva quando
soube da exumação pela imprensa.
Em duas semanas, uma força-tarefa – formada pelos integrantes da Comissão da Verdade, da Polícia Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul – se reunirá com os peritos para definir a data exata da colheita dos restos mortais de João Goulart. Já está decidido que a exumação será administrativa. Ou seja, não haverá necessidade de uma medida judicial para consumá-la, bastando um pedido administrativo ao cemitério municipal para ter acesso ao corpo. Os custos serão bancados pela Secretaria de Direitos Humanos, órgão vinculado à Presidência da República. Em São Borja, a notícia provocou alvoroço. Na última terça-feira 14, a prefeitura do município gaúcho, na fronteira com a Argentina, reforçou a segurança no cemitério onde o ex-presidente está enterrado há 36 anos. Um vigia de uma empresa terceirizada prioriza a guarda junto ao túmulo.
Em duas semanas, uma força-tarefa – formada pelos integrantes da Comissão da Verdade, da Polícia Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul – se reunirá com os peritos para definir a data exata da colheita dos restos mortais de João Goulart. Já está decidido que a exumação será administrativa. Ou seja, não haverá necessidade de uma medida judicial para consumá-la, bastando um pedido administrativo ao cemitério municipal para ter acesso ao corpo. Os custos serão bancados pela Secretaria de Direitos Humanos, órgão vinculado à Presidência da República. Em São Borja, a notícia provocou alvoroço. Na última terça-feira 14, a prefeitura do município gaúcho, na fronteira com a Argentina, reforçou a segurança no cemitério onde o ex-presidente está enterrado há 36 anos. Um vigia de uma empresa terceirizada prioriza a guarda junto ao túmulo.
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