Atualizado em 29.Nov.11 - 07:24
A farra da FAB
Ministério Público investiga fraude na
folha de pagamento da Aeronáutica depois de descobrir que oito mil
militares demitidos nos últimos dez anos permanecem ativos em cadastro
interno
por Claudio Dantas Sequeira
ROMBO
Fraudes na FAB podem chegar a R$ 3 bilhões, valor correspondente
a 70% do investimento previsto para o setor em 2012
O Ministério Público Federal está
debruçado no que pode ser um dos maiores escândalos de desvio de verbas
já descobertos envolvendo a Força Aérea Brasileira. Cerca de oito mil
militares que foram demitidos nos últimos dez anos continuam ativos no
cadastro interno da FAB e de órgãos federais, como o Ministério do
Trabalho e da Previdência. Na enorme lista de soldados fantasmas – que
corresponde a 12% do efetivo da Aeronáutica – constam até mortos,
segundo documentos obtidos com exclusividade por ISTOÉ e que estão sendo
analisados pelo procurador da República Valtan Timbó Furtado, do 7º
Ofício Criminal, de Brasília. Depois de analisar os papéis, que incluem
laudos internos da Aeronáutica e do Ministério da Defesa, o procurador
encontrou elementos suficientes para investigar a FAB por crime contra o
patrimônio e estelionato. “Vou pedir à Polícia Federal que instaure o
inquérito”, disse Furtado à ISTOÉ. O rombo pode alcançar R$ 3 bilhões,
valor equivalente a 70% de todo o investimento da Força Aérea previsto
para 2012 e 20% do orçamento da Defesa. Na mira do procurador estão
chefes de bases aéreas, comandantes do Estado-Maior da Aeronáutica e dos
departamentos e diretorias de pessoal a eles subordinados.
Informada do caso em abril, a presidenta da República, Dilma Rousseff,
ordenou uma devassa nas contas da Aeronáutica. Mas pediu sigilo para
evitar ferir suscetibilidades. A suspeita da fraude aconteceu quando um
grupo de ex-soldados decidiu recorrer à Justiça para tentar reingressar
na FAB. Eles são parte de um contingente de 12 mil homens que entraram
na Força Aérea entre 1994 e 2001, por meio de concurso público para o
cargo de soldado especializado. A função fazia parte do Programa de
Modernização da Administração de Pessoal, idealizado pelo brigadeiro
José Elislande Bayo, que mais tarde seria secretário de Finanças da
Aeronáutica. Em documento interno, classificado como reservado, Bayo
atacou a “cultura viciada de improviso” e “métodos ultrapassados”. Para
combater esses problemas, propôs a reestruturação de quadros e a criação
da “figura do soldado especializado”, que poderia “dispensar o
recrutamento para o serviço militar obrigatório”.
A ideia parecia boa, mas por algum motivo não funcionou. Dos 12 mil
soldados especializados que prestaram concurso, apenas quatro mil foram
aproveitados. Os demais acabaram desligados da FAB sem nenhuma
justificativa, ao término de seis anos engajados. Como o edital não
previa temporalidade, cerca de três mil desses soldados reuniram-se numa
associação, a Anese, Associação Nacional dos Ex-Soldados
Especializados, e passaram a cobrar o direito de reingresso. Foi quando
descobriram que seus cadastros continuavam ativos, apesar da demissão.
Luiz Carlos Oliveira Ferreira, por exemplo, trabalhou no Parque de
Material Aeronáutico dos Afonsos até 2001. Seu desligamento foi
publicado em boletim interno, mas a FAB não comunicou a dispensa ao TCU,
ao Ministério do Trabalho ou à Previdência. Quem consulta a RAIS
(Relação Anual de Informações Sociais), o CNIS (Cadastro Nacional de
Informações Sociais) e o Caged (Cadastro Geral de Empregados e
Desempregados) verifica que Ferreira e tantos outros, como os
ex-soldados Williams de Souza, André Miguel Braga Longo, Alexandre
Gregório, Edmilson Brasil e Anviel Rodrigues, nunca foram demitidos de
fato. “A FAB cometeu todo tipo de fraude cadastral”, acusou o ex-soldado
Marcelo Lopes, que integra a direção da Anese em Brasília.
NA JUSTIÇA
Cerca de 3 mil soldados reuniram-se numa associação,
a Anese, e passaram a cobrar o direito de reingresso à FAB
Robson Sampaio, da Anese do Rio, cita o caso de Alexandre Gregório,
que após deixar a Aeronáutica prestou concurso para a Prefeitura do Rio e
se surpreendeu ao descobrir que suas guias do CNIS, da Rais e do Caged
estavam em nome de Denílson Nogueira, que consta como ativo no Parque de
Material Bélico de São Paulo. Outro caso é o de Edmilson Brasil, que
constam no Caged como aposentado, embora tenha sido demitido da FAB e
hoje trabalhe na empresa Tecnoval Laminados. “Isso é caso de polícia. É
preciso investigar a fundo essa fraude bilionária”, afirma Sampaio. As
fraudes, segundo ele, também envolvem duplicidade de certificado de
reservista de milhares de militares, como os ex-soldados especializados
Teodoro dos Santos Gomes, Sandro Roberto de Souza, Nuil Benigno Andrade
Ferreira e Alessandro Baptista. Eles descobriram que foram emitidos
certificados em seus nomes tanto pelo Exército como pela Aeronáutica.
Até mortos figuram como ativos na FAB, como Paulo Fabrício Cavalcante
Vieira, morto em outubro de 2000 numa troca de tiros.
Questionada por ISTOÉ, a FAB negou o desvio de recursos e garantiu que
os soldados especializados foram desligados da folha de pagamento da
Aeronáutica. Em nota, a assessoria de imprensa alegou que os militares
deixaram de constar da RAIS “desde quando deixaram de receber
remunerações pela Aeronáutica”, o que não é verdade. Da mesma forma, a
FAB alega que o fato de os soldados desligados estarem “ativos” no
CNIS, no Caged e no CBO “não implica o pagamento de benefício pecuniário
e tampouco recebimento de qualquer dotação orçamentária”. A
justificativa não explica, por exemplo, o caso de Paulo André Schinaider
da Silva. ISTOÉ obteve uma cópia da ficha interna do banco de dados da
FAB, chamada SGIPES (Sistema de Informações Gerenciais de Pessoal). O
soldado, admitido em 1998 e desligado em 2004, consta no cadastro
sigiloso como “militar inativo”. Ou seja, aposentado. Portanto,
beneficiário da previdência militar. Schinaider, porém, garante que não
recebe o dinheiro. “Quero saber para onde está indo minha aposentadoria
como militar. Para a minha conta é que não é!”, diz Schinaider. Ao
procurar a FAB, o ex-soldado gravou com uma câmera escondida um
funcionário informando que houve uma reunião para discutir sobre como
desligar os soldados do sistema da FAB. “Ele disse que não havia como e
que uma tenente ficou responsável por enviar ao Ministério do Trabalho e
à Previdência pedidos de retificação da RAIS. Mas isso não muda nada lá
dentro”, afirma Schinaider.
Uma análise da assessoria jurídica, mantida a sete chaves pelo comando,
também atestou a falha no cadastro de soldados e alunos das escolas de
formação de oficiais e sargentos, recomendando à FAB que passe a
comunicar “os ingressos e saídas de praças e alunos” ao Tribunal de
Contas. Descobriu-se que, embora os desligamentos dos soldados constem
de boletim interno da FAB, os mesmos não foram informados aos órgãos de
controle, nem ao Ministério do Trabalho ou à Previdência Social.
Destacado para cuidar do assunto, o ex-deputado José Genoino, assessor
especial do ministro Celso Amorim, admitiu em reunião com ex-soldados o
“nó jurídico e material”. Resta saber se esse nó pode ser desatado e a
quem beneficia. Em 2004, o TCU condenou Jayro José da Silva, ex-gestor
de finanças da Subdiretoria de Pagamento de Pessoal, a devolver quase R$
4,6 milhões em decorrência de uma fraude no cadastro. Ouvido por ISTOÉ,
o coronel, que foi expulso da FAB, diz que assumiu a responsabilidade
sozinho. “Perdi minha carreira, meu emprego e minha honra. Aguentei tudo
para proteger muita gente”, disse. Questionado sobre quem seriam esses
oficiais, Silva foi lacônico. “Melhor não mexer nisso.”
PROVA DO DESCONTROLE
Foram emitidos certificados de reservista, em nome do militar Alessandro Baptista,
tanto pela Aeronáutica quanto pela Marinha, o que aumenta as suspeitas de irregularidades
Documento da Previdência (acima) mostra que, embora tenha sido demitido da FAB,
o militar André Longo continua com cadastro ativo na Aeronáutica. O MP, em ofício
encaminhado ao Departamento de Ensino da Aeronáutica (abaixo),
alerta para as irregularidades na dispensa de soldados