16/03/2013 12h14
- Atualizado em
16/03/2013 12h14
De qualquer ponto de Caracas, a capital da Venezuela, enxerga-se a
Torre David, terceiro maior edifício do país, com 45 andares. O prédio
começou a ser construído em 1990, antes do governo de Hugo Chávez, para
se tornar um marco arquitetônico e uma referência em escritórios
luxuosos. Tornou-se, hoje, a favela mais alta do mundo, habitada por 750
famílias que invadiram o lugar a partir de 2007, na gestão Chávez. Os 3
mil moradores trafegam entre os andares de moto ou pelas escadas, já
que não há elevadores. Faltam também janelas, iluminação e até paredes
externas – a construção nunca foi concluída. A história foi documentada
no livro Torre David: informal vertical communities (Torre David: comunidades verticais informais),
feito pelo estúdio de arquitetura U-TT. A Torre nasceu como um projeto
ambicioso, pensado de ricos para ricos. Faliu e, hoje, é ocupada por
pobres, que poderiam clamar uma vitória com a ocupação, não fosse o fato
de viverem em condições indigentes e perigosas. A favela vertical
tornou-se a metáfora perfeita para a Venezuela de Hugo Chávez.
O governo que terminou no dia 5 de março, com a morte de Chávez, durou
14 anos. Esse período foi suficiente para que houvesse, em vários
grandes países da América Latina, amadurecimento da democracia, melhora
de indicadores sociais, redução da pobreza, redução da desigualdade,
crescimento econômico e ganho de estabilidade. Essa foi a história no
Brasil e em outras nações, como Chile, Colômbia, México e Peru. Em
alguns posts em redes sociais, correntes de e-mail, conversas de bar e
discursos políticos, pode-se ter a impressão falsa de que Chávez tenha
sido um campeão dessas causas na Venezuela. Trata-se de um engano, uma
mistura de crença ingênua em soluções voluntariosas, deslumbramento com
figuras carismáticas, ignorância estatística e, por vezes, simples
má-fé. A Venezuela, sob o governo populista de Chávez, piorou. A pobreza
e a desigualdade diminuíram, sim, mas em ritmo não muito diferente do
resto do continente. O país conseguiu um único grande trunfo – quase
acabar com o analfabetismo –, mas com um custo terrível. Os
venezuelanos, hoje, sofrem com mais violência, saúde pior e instituições
democráticas em frangalhos. A fragilidade da economia é disfarçada pela
exportação de um único produto, o petróleo. Chávez ignorou a lição que
vem funcionando para outros países mais ricos e igualmente dependentes
de uma única matéria-prima, como a Noruega (o petróleo) e o Chile (o
cobre): é preciso poupar e diversificar, em preparação para um futuro
que pode não ser tão amigável. Na visão de mundo chavista, nunca há
problemas em consumir vorazmente a renda gerada pelo petróleo, a fim de
produzir resultados rápidos.
1. AMBIENTE DE NEGÓCIOS
Na Venezuela do chavismo, o presidente e seus assessores trabalham para se manter indefinidamente no poder e mudar à vontade as regras que orientam os investimentos. As grandes organizações e os grandes investidores temem passar a ser tratados como inimigos. Foi o que ocorreu com o banco espanhol Santander, que se retirou do país em 2009. Cria-se um clima desanimador para os investidores e os criadores de novos negócios, tanto domésticos quanto estrangeiros. O Conselho Empresarial da Venezuela estima na casa dos milhares o número de empresas fechadas, desde 1999, porque seus dirigentes foram considerados antagonistas de autoridades. O país deixou de ser um receptor de imigrantes. Cerca de 500 mil pessoas emigraram na era Chávez, grande parte delas profissionais bem qualificados. Entre eles está parte dos 20 mil petroleiros (incluindo doutores) que perderam o emprego em projetos privados no setor e, por motivos políticos, na estatal PDVSA. Segundo o Banco Mundial, a Venezuela é o pior país da América Latina para fazer negócios. Aparece em 180O lugar entre 185 países avaliados no ranking Doing Business, que mede a facilidade para abrir e conduzir uma empresa (o Brasil está em 130O, a Colômbia em 45O, e o Chile, latino-americano mais bem colocado, fica em 37O). Apesar de ser uma nação rica em petróleo, a Venezuela aparece na pior colocação da América Latina em segurança no fornecimento de energia. A retórica estridente de Chávez contra investidores não mudou um fato: o país continua precisando de capital externo. O resultado é que a Venezuela, embora sempre tenha honrado dívidas do governo, passou a pagar juros mais altos para conseguir novos empréstimos, no mesmo nível que a ex-caloteira Argentina. “O governo Chávez assustou empresários e profissionais qualificados. E piorou a imagem da América do Sul diante do mundo”, diz a economista Vitória Saddi, da escola de negócios Insper e ex-economista-chefe para economias emergentes da RGE Monitor, consultoria de análise de risco de Nova York.
2. INFLAÇÃO
As consequências desse tipo de política não se limitam ao mundo dos grandes investidores e multinacionais. Ao longo do governo Chávez, tornou-se mais difícil produzir no país. Isso faz com que mesmo o modesto poder de compra dos venezuelanos pressione os preços para cima. Além disso, o governo promove regularmente desvalorizações da moeda, o bolívar, para facilitar as exportações de petróleo. Um bolívar mais fraco ante o dólar faz com que tudo fique mais caro, num país em que todo item de consumo é importado. Na última década, enquanto a América Latina domou os preços, a inflação na Venezuela se manteve nas alturas, perto de 32% no ano passado (no Brasil, ela ficou abaixo de 6%). A partir de 2008, a economia da Venezuela entrou em declínio mais acentuado. A produção de petróleo caiu, o abastecimento de bens de consumo piorou, e a inflação ganhou força. Como gerações de brasileiros aprenderam da pior forma, a perda do poder de compra da moeda é devastadora para os pobres – aqueles mesmos que Chávez afirmava defender. Essa não foi, porém, a principal causa de avanço da oposição nos últimos anos.
3. VIOLÊNCIA
O que mais preocupa os venezuelanos, atualmente, é a falta de segurança. As taxas de homicídio mais que triplicaram na era Chávez, segundo a ONG Observatório Venezuelano de Violência. “Isso mostra que o tecido social se dissolveu ao longo desse governo”, afirma André Medici, economista aposentado do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e analista de América Latina há 30 anos. A explicação do fenômeno é difícil. A redução da desigualdade na distribuição de renda e a da pobreza deveriam ter contribuído para conter a criminalidade. Medici acredita que a política distributiva chavista, embora tenha atacado problemas emergenciais de falta de comida, roupa e abrigo, fez pouco para inserir os mais pobres no mercado de trabalho. Chávez também explorou politicamente as diferenças sociais e tratou os ricos como vilões. Esse ambiente pode ter estimulado a violência. “O próprio Chávez chegou a dizer que, se sua renda fosse insuficiente para sustentar a família, seria capaz de roubar e matar”, afirma Medici.
Há outro componente na criminalidade. O governo Chávez foi fortemente
militarizado e incentivou uma cultura armamentista. “Preocupa que tenham
ganhado força política Forças Armadas desestruturadas, divididas por
disputas de poder e, segundo muitos informes, corruptas”, afirma Miguel
Ángel Martínez Meucci, professor do Departamento de Ciências Sociais da
Universidad Simón Bolívar, de Caracas. Em 2005, três anos depois de
sofrer um golpe de Estado, Chávez criou por decreto as Milícias
Bolivarianas, à imagem dos Comitês de Defesa da Revolução, em Cuba.
Ficaram famosas sob o slogan “Povo em armas”. A força de 120 mil civis
treinados no uso de fuzis, lança-foguetes e explosivos eram parte de um
plano peculiar: criar uma organização paralela, cuja missão era
“proteger o país contra o império”. Além disso, serviram para intimidar
opositores e eventuais facções descontentes nas Forças Armadas. Há mais
de 1.000 desses batalhões pelo país. Nessas condições, não é difícil que
armamento pesado caia nas mãos de criminosos. “A militarização não
impediu o desenvolvimento do narcotráfico, que é dramático”, diz Alfredo
Ramos Jiménez, diretor do Centro de Investigações em Políticas
Comparadas, da Universidade dos Andes.
4. SAÚDE
O fracasso chavista na segurança pública não impressiona tanto quanto a piora nos indicadores de saúde. A segurança é uma questão complexa, desafiadora mesmo para Estados mais fortes e organizados que a Venezuela. Saúde, nem tanto. Principalmente em países pobres ou com bolsões de pobreza, como os latino-americanos, é possível obter resultados impressionantes com ações simples, como instalação de redes de saneamento básico e cuidados preventivos com gestantes e recém-nascidos.
No início de seu governo, Chávez estreou nessa frente promovendo
visitas de médicos às casas da população. Era a missão Bairro Adentro,
que também distribuía comida aos pobres. Essa política deixou de lado
investimentos em redes e hospitais e na maior eficiência do sistema e
logo deu sinais de suas limitações. Entre 2004 e 2007, Chávez deu novo
formato a suas políticas sociais, sob a forma das “missões
bolivarianas”. Uma missão é uma campanha que movimenta pessoal e
recursos com um fim específico, em saúde, educação ou distribuição de
alimentos. As mais de 30 missões se revelaram um barulhento instrumento
de marketing político. Nas de saúde foram incluídos médicos experientes
vindos de Cuba. Na ilha caribenha, pequenos grupos de profissionais de
saúde, mesmo com pouco equipamento, conseguiram feitos razoáveis ao
longo das últimas décadas. Quando chegaram às favelas da Venezuela, foi
como se tivessem caído de paraquedas num cenário de guerra, para o qual
estavam despreparados. “A política de saúde para as áreas urbanas da
Venezuela precisava ser muito mais complexa do que a proporcionada por
uma política populista”, afirma Medici. O assistencialismo não compensa a
falta de infraestrutura adequada. Na comparação com Brasil, Chile,
México e Peru, a Venezuela andou para trás. Os índices venezuelanos são
piores em vacinação, saneamento, mortalidade infantil e materna. A
Venezuela quase não reduziu as mortes de mães após o parto – o índice
ficou em 92 mulheres mortas por 100 mil bebês nascidos vivos, muito
acima dos vizinhos.
5. DEMOCRACIA
Ainda que o governo Chávez tivesse alcançado sucesso estrondoso em indicadores sociais, seu saldo continuaria negativo por ter corroído o estado de Direito – o ambiente saudável em que cidadãos e organizações conhecem seus direitos e deveres. O governo chavista e seus defensores sempre insistiram que Chávez nunca se tornou um tirano e se submeteu a quatro eleições presidenciais e dez outras votações populares, como referendos (perdeu apenas uma, em 2007, ao tentar obter autorização para fazer uma reforma constitucional).
Mas a ocorrência de eleições limpas com voto secreto não é o único ingrediente de uma democracia moderna. São necessárias também liberdade de expressão, de organização e de participação política, garantia de direitos civis iguais a todo cidadão, Poderes independentes e instituições públicas fiscalizadoras dos governantes. Esses outros pilares foram minados ao longo da administração chavista. O indicador Voz e Responsabilização, do Banco Mundial, se propõe a avaliar as condições de alguns desses critérios. À medida que as democracias se aprimoram, o filtro se torna mais severo. Numa escala de zero a 100, Cuba, uma ditadura, fica com um mirrado 7. O civilizadíssimo Canadá obtém hoje nota 95, resultado em pequena queda diante de avaliações anteriores. O Brasil melhorou. A Venezuela caiu de 49 para menos de 30.
A corrosão da democracia na era Chávez foi bem documentada. O acelerado
domínio do Estado por Chávez começou antes do golpe de 2002 e se
prolongou até 2004. Chávez avançou no controle da Assembleia Nacional,
Controladoria, Procuradoria, Defensoria Pública, Conselho Nacional
Eleitoral e Justiça. Em 2004, ele ampliou de 20 para 32 o número de
cadeiras na mais alta corte venezuelana, o Tribunal Supremo de Justiça
(TSJ). Os 12 novos juízes foram designados pela maioria chavista na
Assembleia Nacional. Nos anos seguintes, os outros juízes independentes
foram gradualmente removidos. A derradeira, Blanca Rosa Mármol, deixou o
cargo no início de 2013. “Os integrantes do TSJ dependem da Assembleia,
que segue Chávez”, afirma o cientista político Alfredo Ramos Jiménez.
“Portanto, não há hoje um Tribunal que possa contrariar o Executivo. Há
um controle do Executivo sobre o Judiciário.”
Um episódio exemplar da truculência chavista no avanço sobre as instituições foi a prisão da juíza Maria Lourdes Afiuni, em 2009. Ela concedera liberdade condicional ao empresário Eligio Cedeño, um opositor político de Chávez, acusado de fraude cambial. Cedeño aproveitou a decisão para exilar-se nos Estados Unidos. Por isso, a juíza foi presa, acusada de corrupção e conspiração, sem direito a defesa.
6. POBREZA
Diante do conjunto de fracassos em áreas fundamentais para o desenvolvimento e o bem-estar da população no longo prazo, os defensores do chavismo brandem dois tipos de estatística. Um deles é a redução da pobreza. É verdade que o governo populista conseguiu diminuir a concentração de renda, medida pelo Índice Gini. Ao longo dos últimos 14 anos, o país se tornou o mais igualitário da América do Sul. É importante notar que, antes do governo Chávez, a Venezuela já ostentava uma desigualdade menor que a média da região. Isso diz mais sobre a concentração de renda tenebrosa nos vizinhos, como o Brasil, do que sobre méritos da Venezuela. Ao longo do governo Chávez, a Venezuela apenas ultrapassou o Uruguai e passou da segunda para a primeira posição nesse quesito. Para além da desigualdade, o resultado chavista no combate à pobreza não impressiona.
Desde 1999, a parcela de venezuelanos vivendo na penúria caiu de 49,4%
para 29,5%, uma trajetória muito parecida com a do Peru, que tem a mesma
população. O Peru, porém, percorreu esse caminho com alternância de
poder. Lá, a democracia melhorou. Os peruanos têm chances muito maiores
de continuar prosperando no futuro, independentemente da vontade de um
único governante. O nível de pobreza na Venezuela, hoje, é apenas igual à
média na América Latina e pior que no Brasil, de acordo com a Cepal
(Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). Os programas
sociais que beneficiam hoje 60% da população venezuelana representam
péssimos modelos para a região. A maior parte deles simplesmente oferece
dinheiro ou comida às famílias inscritas, sem nenhuma exigência de
contrapartida, como educação, vacinação das crianças ou qualificação
profissional dos adultos.
A pobreza crônica dos venezuelanos, apenas mitigada por programas assistencialistas, está ligada à escassez de investimentos e à dependência do país de um único setor, o petrolífero. Essa condição torna o país vulnerável aos humores de alguns poucos compradores, à cotação internacional de algumas poucas mercadorias e à saúde de algumas poucas empresas. A exportação de uma única matéria-prima (ou de um pequeno grupo delas) correspondeu, em 2010, a algo próximo de 5% do PIB do Brasil e 10% do PIB da Colômbia. Na Venezuela, essa parcela chegou a 26%.
Lá, a exportação de petróleo é a única fonte a alimentar os programas
populares e assistencialistas. Por isso, mesmo as conquistas sociais
apresentadas como trunfos do governo Chávez correm alto risco. Um estudo
feito pelo FMI com 12 países grandes e exportadores de matérias-primas
(incluindo o Brasil) mostrou que alguns mantêm estável o nível do gasto
público. Atravessam sem grandes oscilações as altas e as baixas das
cotações das mercadorias que exportam. É o caso de Noruega, Canadá ou
Chile. O Brasil ficou no pelotão intermediário. A Venezuela mostrou a
variação mais intensa entre todos os avaliados. Isso significa que a
capacidade de o governo atender os mais pobres flutua fortemente, ao
sabor do mercado global de petróleo. As oscilações do gasto público
venezuelano foram quatro vezes superiores às do Chile e duas vezes às do
Brasil.
7. ANALFABETISMO
Nessa situação, torna-se difícil que os venezuelanos aproveitem plenamente o único bom legado da era Chávez: a erradicação do analfabetismo. O país passou a ser considerado pela Unesco como livre desse mal em 2005, após um esforço concentrado que durou dois anos e meio. Pelos padrões da Unesco, considera-se o analfabetismo erradicado quando ele fica em até 5% da população adulta. Na América Latina, os outros países considerados plenamente alfabetizados são Argentina, Cuba, Uruguai e Chile. O Brasil ainda não chegou lá. Foi uma conquista e tanto do governo bolivariano, embora os críticos de Chávez alertem para o componente de doutrinação política que foi incluído nas aulas. Espera-se que uma geração de venezuelanos mais instruídos consiga, nos próximos anos, reconstruir a democracia e escolher melhor seus governantes.
A era perdida da Venezuela
A propaganda chavista não tem como desmentir os fatos. Em comparação com o resto da América Latina, os venezuelanos ficaram para trás. Pior ainda para os mais pobres
Na Venezuela do chavismo, o presidente e seus assessores trabalham para se manter indefinidamente no poder e mudar à vontade as regras que orientam os investimentos. As grandes organizações e os grandes investidores temem passar a ser tratados como inimigos. Foi o que ocorreu com o banco espanhol Santander, que se retirou do país em 2009. Cria-se um clima desanimador para os investidores e os criadores de novos negócios, tanto domésticos quanto estrangeiros. O Conselho Empresarial da Venezuela estima na casa dos milhares o número de empresas fechadas, desde 1999, porque seus dirigentes foram considerados antagonistas de autoridades. O país deixou de ser um receptor de imigrantes. Cerca de 500 mil pessoas emigraram na era Chávez, grande parte delas profissionais bem qualificados. Entre eles está parte dos 20 mil petroleiros (incluindo doutores) que perderam o emprego em projetos privados no setor e, por motivos políticos, na estatal PDVSA. Segundo o Banco Mundial, a Venezuela é o pior país da América Latina para fazer negócios. Aparece em 180O lugar entre 185 países avaliados no ranking Doing Business, que mede a facilidade para abrir e conduzir uma empresa (o Brasil está em 130O, a Colômbia em 45O, e o Chile, latino-americano mais bem colocado, fica em 37O). Apesar de ser uma nação rica em petróleo, a Venezuela aparece na pior colocação da América Latina em segurança no fornecimento de energia. A retórica estridente de Chávez contra investidores não mudou um fato: o país continua precisando de capital externo. O resultado é que a Venezuela, embora sempre tenha honrado dívidas do governo, passou a pagar juros mais altos para conseguir novos empréstimos, no mesmo nível que a ex-caloteira Argentina. “O governo Chávez assustou empresários e profissionais qualificados. E piorou a imagem da América do Sul diante do mundo”, diz a economista Vitória Saddi, da escola de negócios Insper e ex-economista-chefe para economias emergentes da RGE Monitor, consultoria de análise de risco de Nova York.
As consequências desse tipo de política não se limitam ao mundo dos grandes investidores e multinacionais. Ao longo do governo Chávez, tornou-se mais difícil produzir no país. Isso faz com que mesmo o modesto poder de compra dos venezuelanos pressione os preços para cima. Além disso, o governo promove regularmente desvalorizações da moeda, o bolívar, para facilitar as exportações de petróleo. Um bolívar mais fraco ante o dólar faz com que tudo fique mais caro, num país em que todo item de consumo é importado. Na última década, enquanto a América Latina domou os preços, a inflação na Venezuela se manteve nas alturas, perto de 32% no ano passado (no Brasil, ela ficou abaixo de 6%). A partir de 2008, a economia da Venezuela entrou em declínio mais acentuado. A produção de petróleo caiu, o abastecimento de bens de consumo piorou, e a inflação ganhou força. Como gerações de brasileiros aprenderam da pior forma, a perda do poder de compra da moeda é devastadora para os pobres – aqueles mesmos que Chávez afirmava defender. Essa não foi, porém, a principal causa de avanço da oposição nos últimos anos.
O que mais preocupa os venezuelanos, atualmente, é a falta de segurança. As taxas de homicídio mais que triplicaram na era Chávez, segundo a ONG Observatório Venezuelano de Violência. “Isso mostra que o tecido social se dissolveu ao longo desse governo”, afirma André Medici, economista aposentado do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e analista de América Latina há 30 anos. A explicação do fenômeno é difícil. A redução da desigualdade na distribuição de renda e a da pobreza deveriam ter contribuído para conter a criminalidade. Medici acredita que a política distributiva chavista, embora tenha atacado problemas emergenciais de falta de comida, roupa e abrigo, fez pouco para inserir os mais pobres no mercado de trabalho. Chávez também explorou politicamente as diferenças sociais e tratou os ricos como vilões. Esse ambiente pode ter estimulado a violência. “O próprio Chávez chegou a dizer que, se sua renda fosse insuficiente para sustentar a família, seria capaz de roubar e matar”, afirma Medici.
O fracasso chavista na segurança pública não impressiona tanto quanto a piora nos indicadores de saúde. A segurança é uma questão complexa, desafiadora mesmo para Estados mais fortes e organizados que a Venezuela. Saúde, nem tanto. Principalmente em países pobres ou com bolsões de pobreza, como os latino-americanos, é possível obter resultados impressionantes com ações simples, como instalação de redes de saneamento básico e cuidados preventivos com gestantes e recém-nascidos.
Ainda que o governo Chávez tivesse alcançado sucesso estrondoso em indicadores sociais, seu saldo continuaria negativo por ter corroído o estado de Direito – o ambiente saudável em que cidadãos e organizações conhecem seus direitos e deveres. O governo chavista e seus defensores sempre insistiram que Chávez nunca se tornou um tirano e se submeteu a quatro eleições presidenciais e dez outras votações populares, como referendos (perdeu apenas uma, em 2007, ao tentar obter autorização para fazer uma reforma constitucional).
Mas a ocorrência de eleições limpas com voto secreto não é o único ingrediente de uma democracia moderna. São necessárias também liberdade de expressão, de organização e de participação política, garantia de direitos civis iguais a todo cidadão, Poderes independentes e instituições públicas fiscalizadoras dos governantes. Esses outros pilares foram minados ao longo da administração chavista. O indicador Voz e Responsabilização, do Banco Mundial, se propõe a avaliar as condições de alguns desses critérios. À medida que as democracias se aprimoram, o filtro se torna mais severo. Numa escala de zero a 100, Cuba, uma ditadura, fica com um mirrado 7. O civilizadíssimo Canadá obtém hoje nota 95, resultado em pequena queda diante de avaliações anteriores. O Brasil melhorou. A Venezuela caiu de 49 para menos de 30.
Um episódio exemplar da truculência chavista no avanço sobre as instituições foi a prisão da juíza Maria Lourdes Afiuni, em 2009. Ela concedera liberdade condicional ao empresário Eligio Cedeño, um opositor político de Chávez, acusado de fraude cambial. Cedeño aproveitou a decisão para exilar-se nos Estados Unidos. Por isso, a juíza foi presa, acusada de corrupção e conspiração, sem direito a defesa.
Diante do conjunto de fracassos em áreas fundamentais para o desenvolvimento e o bem-estar da população no longo prazo, os defensores do chavismo brandem dois tipos de estatística. Um deles é a redução da pobreza. É verdade que o governo populista conseguiu diminuir a concentração de renda, medida pelo Índice Gini. Ao longo dos últimos 14 anos, o país se tornou o mais igualitário da América do Sul. É importante notar que, antes do governo Chávez, a Venezuela já ostentava uma desigualdade menor que a média da região. Isso diz mais sobre a concentração de renda tenebrosa nos vizinhos, como o Brasil, do que sobre méritos da Venezuela. Ao longo do governo Chávez, a Venezuela apenas ultrapassou o Uruguai e passou da segunda para a primeira posição nesse quesito. Para além da desigualdade, o resultado chavista no combate à pobreza não impressiona.
A pobreza crônica dos venezuelanos, apenas mitigada por programas assistencialistas, está ligada à escassez de investimentos e à dependência do país de um único setor, o petrolífero. Essa condição torna o país vulnerável aos humores de alguns poucos compradores, à cotação internacional de algumas poucas mercadorias e à saúde de algumas poucas empresas. A exportação de uma única matéria-prima (ou de um pequeno grupo delas) correspondeu, em 2010, a algo próximo de 5% do PIB do Brasil e 10% do PIB da Colômbia. Na Venezuela, essa parcela chegou a 26%.
Nessa situação, torna-se difícil que os venezuelanos aproveitem plenamente o único bom legado da era Chávez: a erradicação do analfabetismo. O país passou a ser considerado pela Unesco como livre desse mal em 2005, após um esforço concentrado que durou dois anos e meio. Pelos padrões da Unesco, considera-se o analfabetismo erradicado quando ele fica em até 5% da população adulta. Na América Latina, os outros países considerados plenamente alfabetizados são Argentina, Cuba, Uruguai e Chile. O Brasil ainda não chegou lá. Foi uma conquista e tanto do governo bolivariano, embora os críticos de Chávez alertem para o componente de doutrinação política que foi incluído nas aulas. Espera-se que uma geração de venezuelanos mais instruídos consiga, nos próximos anos, reconstruir a democracia e escolher melhor seus governantes.
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