quinta-feira, 3 de abril de 2014

Isso será um problema mais a frente, ou não.

O Brasil na era pós-Fukushima

Três anos depois do desastre no Japão, o jogo da energia atômica ficou mais difícil. O Brasil terá de rever planos e gastar mais para continuar nele

MARCOS CORONATO E ALINE IMERCIO
02/04/2014 07h00 - Atualizado em 02/04/2014 07h36
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Depois de um passeio de três anos pelo Oceano Pacífico, chega à Costa Oeste dos Estados Unidos, até abril, a primeira leva de detritos radioativos arrastados da usina de Fukushima, no Japão. Os detritos, conduzidos pela correnteza, foram para o mar em 2011, depois de a usina ser danificada por um terremoto seguido de uma onda gigante. O nível de radiação que chega ao litoral americano não oferece perigo, mas serve de lembrete incômodo – as consequências de acidentes nucleares duram muito e chegam longe. O problema original nem ao menos foi contido. Em Fukushima, vazamentos de água radioativa da usina para o mar ocorrem até hoje. O pior dos últimos seis meses aconteceu em fevereiro, quando 100 toneladas de água contaminada foram para o oceano. Tudo por causa de um desastre natural que parecia muito improvável.
Na era pós-Fukushima, o jogo da energia nuclear passou a ter regras mais duras. “A primeira fase de resposta a Fukushima foi pensar nas questões óbvias, com base no que aconteceu lá – temos de garantir que salas de controle e geradores não sejam inundados”, diz o britânico Steve Thomas, professor de política energética na Universidade de Greenwich e ex-consultor da Eletronuclear. “A segunda fase é mais lenta. Exige que você considere possibilidades que antes eram impensáveis.” O Brasil, com suas duas usinas nucleares, terá aprendido a lição?
A central nuclear de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, onde ficam as duas usinas brasileiras, pertence à estatal Eletronuclear. A companhia aplica, desde o fim de 2011, um Plano de Resposta a Fukushima. Entre as medidas estão o reforço de estruturas de contenção para o caso de deslizamentos (maior risco na região, chuvosa e de relevo acidentado) e simulações de desastres naturais mais pessimistas. Está nos planos a instalação de um reservatório de água, bombas e compressores para resfriar o reator nuclear em caso de acidente grave (o desastre de Fukushima piorou quando a onda gigante interrompeu o sistema de resfriamento). O investimento da Eletronuclear no aumento de segurança passa dos R$ 50 milhões, e o plano não tem prazo para conclusão. Até o momento, ele não tratou de algumas questões fundamentais.
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Uma delas é o pequeno alcance do plano de emergência. Ele prevê remover a população num raio de 5 quilômetros da central nuclear para abrigos perigo samente próximos, a 15 quilômetros do local. Isso atende ao mínimo recomendado pela Agência Internacional de Energia Nuclear. Mas a maioria dos países com geração nuclear de energia adotou procedimentos de emergência mais abrangentes. “Uma pesquisa de 2012 com todas as usinas da Europa, o FlexRisk, concluiu que um acidente severo exige medidas numa distância de 300 quilômetros. Se ocorrer um acidente desses em Angra, o plano de emergência falha”, diz o engenheiro nuclear Jailton Ferreira, funcionário da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Ferreira lembra que a usina Angra 2 adota como referência a usina “gêmea” de Grafenrheinfeld, na Alemanha. “Não há por que não fazer logo, para Angra 2, um estudo equivalente ao que foi feito para a usina alemã. Temos no Brasil os dados, o software e o computador necessários”, afirma.
Um alerta semelhante é feito pelo engenheiro Célio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP). Ele considera a região de Angra dos Reis inadequada para abrigar usinas nucleares, por razões variadas – há poucas vias de escape, as chuvas volta e meia bloqueiam as estradas, e o trânsito de turistas é intenso. Por isso, Bermann considera má ideia construir a usina Angra 3, com previsão de conclusão em 2018. Para piorar, o projeto da usina é antigo, dos anos 1970. Isso deveria ser compensado com mais investimento e planejamento para emergências.
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Por sua natureza peculiar, o setor de energia nuclear tem de trabalhar com cenários catastróficos, obras complexas e planejamento com prazos muito longos. As falhas no acidente da usina de Three Mile Island, nos EUA, em 1979, um dos piores da história, só foram compreendidas cinco anos depois. Só hoje há usinas em construção que embutem o aprendizado com o desastre de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986. Por isso, toda lição importa muito. A usina Angra 1 também tem uma “gêmea”, a usina americana de Kewaunee, no Wisconsin. Ela foi desligada no ano passado, mas contava com procedimentos de emergência mais impressionantes que sua irmã brasileira (leia no quadro a comparação dos planos de emergência das usinas brasileiras e estrangeiras).

Como remover populações (Foto: Fontes: usinas, Eletronuclear, FlexRisk (Fotos: Folhapress, Alamy, Reuters e Newscom))

Nos Estados Unidos, a área de evacuação foi estendida de 5 quilômetros ao redor da usina para 16 quilômetros. Os planos de emergência também incluem medidas para um raio de 80 quilômetros, a fim de evitar que a população consuma alimentos e água contaminados. As instruções para os habitantes da área ao redor da usina de Kewaunee, disponíveis na internet, incluíam detalhes como nomes das escolas a evacuar e orientação para que os pais não tentassem buscar as crianças, a fim de evitar congestionamentos. O poder público se encarregaria de levá-las, de ônibus, a pontos de encontro predeterminados. As instruções nos EUA e na Alemanha chegam a minúcias. Explicam como seria a distribuição de pílulas de iodo, para evitar o envenenamento radioativo, e o que fazer com animais domésticos, já que eles não são aceitos em abrigos coletivos de emergência.
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A população ao redor das usinas de Angra também tem material instrutivo, mas com orientações mais vagas e em tom infantilizado (em parte do material, em forma de história em quadrinhos, um personagem chamado Zé Elétrico dá explicações a crianças). Além das instruções claras e do plano de evacuação mais abrangente, os EUA avaliam a tecnologia e os procedimentos em suas 100 usinas nucleares. Destinaram US$ 2 bilhões a melhorias de segurança naquelas em que isso for necessário. A presidente da Comissão Reguladora de Energia Nuclear dos EUA, Allisson Macfarlane, resume bem a situação: “Fukushima foi um grito de alerta não somente para os EUA, para o setor e para esta Comissão Reguladora. Foi um grito de alerta para o mundo”. A França elevou as exigências de segurança, e seu cumprimento, nas 58 usinas do país, deverá custar € 10 bilhões – uma quantia nem tão exagerada, dado que a França exporta € 3 bilhões em energia elétrica todo ano. O governo alemão reagiu de forma mais extrema e decidiu desligar suas 17 usinas nucleares até 2022.
O vazamento de água radioativa de fevereiro e a chegada dos detritos contaminados ao litoral dos EUA tornam o assunto difícil no Japão. O primeiro-ministro, Shinzo Abe, mesmo neste momento ruim, apresentou o rascunho da nova política energética do país. Provocou polêmica. Ele quer religar os 58 reatores nucleares japoneses (todos foram desligados após o desastre de Fukushima) e apenas diminuir o papel da energia nuclear na matriz de energia japonesa. Segundo a proposta, as usinas nucleares mantêm um papel importante no futuro de um país pobre em opções energéticas.
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No mundo todo, incluindo o Brasil, o aumento de custo com as novas medidas de segurança é inevitável. “A energia gerada em Angra chega a ser 50% mais custosa que a média no país. Com a tecnologia de segurança mais moderna, os reatores ficam mais caros, e o custo vai para o consumidor”, diz o físico José Goldemberg , especialista em energia e ex-reitor da Universidade de São Paulo.
O Brasil já sofreu duramente as consequências de se aventurar numa fronteira tecnológica sem aplicar a seriedade e o dinheiro necessários. Em 2003, uma falha num Veículo Lançador de Satélites provocou uma explosão no Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. Morreram 21 pessoas na tragédia. Nem por isso o Brasil deveria abandonar seu programa espacial. Da mesma forma que deveria manter seu programa nuclear pacífico, seguindo os passos de Estados Unidos, França, Japão e outras nações desenvolvidas. Essa forma de geração não chega a ser crucial para o Brasil, atualmente. Corresponde a 3% da capacidade nacional. Sabe-se que o país tem muito a produzir a partir de outras fontes, como ventos, sol, marés e resíduos orgânicos. Nada disso significa que o Brasil deva dispensar a energia nuclear. Trata-se de uma fonte com imenso potencial de expansão e comparativamente limpa. Ela gera resíduos em volume pequeno e administrável. Trata-se também de uma frente de desenvolvimento tecnológico com outras aplicações, além da energética. O país deveria continuar no jogo – mas ciente de que ele se tornou mais sério.

Lembranças de Fukushima (Foto: reprodução)


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