19/04/2013 22h17
- Atualizado em
19/04/2013 22h17
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, de 77 anos, ganhador do prêmio
Nobel de Literatura de 2010, voltou ao Brasil, depois de três anos, para
dar uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento, em São Paulo.
Defensor dos princípios liberais e democráticos, Llosa é hoje um dos
raros intelectuais públicos militantes. “Estou esperançoso com o destino
da América Latina”,
diz. “Pela primeira vez, o continente conta com uma esquerda não
autoritária e uma direita genuinamente interessada em democracia.” Uma
exceção, segundo ele, é o chavismo na Venezuela – tão absurdo que, em sua opinião, daria um romance.
Como o livro se chamaria? O autor de A festa do bode, ficção sobre o ditador dominicano Rafael Trujillo, responde, bem-humorado: A festa do passarinho. O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, durante a campanha eleitoral, disse em discursos que ouvia a voz de Hugo Chávez no canto dos pássaros. Abrindo várias vezes o sorriso largo que se tornou sua marca, Llosa deu a seguinte entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA – Como o senhor analisa a eleição na Venezuela, vencida por Nicolás Maduro por uma diferença de pouco mais de 1 ponto percentual?
Mario Vargas Llosa – Henrique Capriles ganhou as eleições. O uso da máquina do Estado e de seus meios de comunicação foi tão desproporcional que Nicolás Maduro deveria ter vencido o pleito de forma avassaladora. Não foi assim. Houve praticamente um empate. Isso significa claramente que há uma grande reação do povo venezuelano contra o chavismo, contra o que representa Maduro. Por isso, a possibilidade de fraude é grande. Também por isso, me parece justo fazer a recontagem rigorosa dos votos. Os presidentes da América Latina não deveriam legitimar uma possível fraude eleitoral, indo assistir à entronização de Maduro. Seria um ato de cumplicidade contra o povo venezuelano, que claramente pede a democratização, a abertura, a mudança de política. É um momento importante, talvez fundamental, na história da América Latina.
>>Dividida, Venezuela mantém-se calma após semana tensa
ÉPOCA – A presidente Dilma Rousseff enviou cumprimentos a Maduro pela vitória, logo que saíram os primeiros resultados das eleições. Isso é uma forma de apoio?
Llosa – É um ato de cumplicidade com o que está ocorrendo na Venezuela. É lamentável isso partir de um governo democrático. Dilma não deveria apoiar uma fraude eleitoral. Ela não é o único caso. Todos os que fazem isso me parecem igualmente lamentáveis. Deveria haver maior coerência entre a política internacional e a política nacional por parte dos governos democráticos. Os governos que praticam a política chavista, que querem o socialismo autoritário, entendo que se solidarizem com Maduro. Mas governos que praticam internamente a democracia agem de forma absurda quando se tornam cúmplices de governos autoritários, mesmo que seja para aplacar internamente seus radicais. Felizmente, alguns mostram independência. É positiva a atitude da OEA (Organização dos Estados Americanos), ao pedir a recontagem de votos. E devo felicitar governos como o da Espanha, que não enviarão ninguém para representar o país na posse de Maduro, enquanto não se esclarecer o que aconteceu de fato nessas eleições.
ÉPOCA – O socialismo fascinou muitos escritores na América Latina. O caso mais conhecido é o colombiano Gabriel García Márquez, que apoiou o regime cubano. No caso da Venezuela de Chávez, não apareceram muitos escritores para apoiar o regime. O que mudou?
Llosa – Mudou algo muito importante. É a primeira vez que um governo populista e autoritário conta com a oposição de praticamente toda a classe intelectual. As universidades, que costumavam ser radicais na Venezuela, são praticamente todas antichavistas, estão na vanguarda na luta pela democratização. Não conheço um escritor venezuelano importante que não esteja combatendo em favor da democratização. A única exceção é o romancista Luís Britto Garcia. É um sintoma alentador, porque, no passado, a intelectualidade latino-americana cometeu a insensatez de apoiar regimes como Cuba, a ditatura mais longa que o continente já teve em toda a sua história.
ÉPOCA – O senhor foi um desses intelectuais, não? Quais as razões para esse fascínio por Cuba e Fidel Castro?
Llosa – Sim, também faço minha autocrítica. Reconheço que, quando jovem, senti um entusiasmo acrítico com o que acontecia. No fim dos anos 1950, quando a América Latina era um continente de regimes militares e os Estados Unidos apareciam como aliados dos ditadores, Cuba parecia representar a alternativa, o progresso, a democracia, a liberdade. Por outro lado, parecia uma revolução que não tinha sido feita pelo stalinismo e o Partido Comunista, e sim por jovens idealistas, socialistas libertários. Estávamos enganados sobre a Revolução Cubana no início. Havia um contexto que explicava esse entusiasmo. É difícil manter a ilusão 54 anos depois. Cuba é uma ditadura que destruiu o espírito crítico, empobreceu selvagemente o país. O país depende hoje da caridade venezuelana. Ao lado da Coreia do Norte, Cuba representa o maior anacronismo de nosso tempo. Esses regimes não são modelos para ninguém. Vivem o final de seus ciclos, como aconteceu com todos os regimes socialistas autoritários do mundo.
ÉPOCA – Há, hoje, vários intelectuais latino-americanos comprometidos com a causa democrática, inclusive em Cuba.
Llosa – Sim, claro. Recentemente conheci duas mulheres extraordinárias. Uma delas é a cubana Yoani Sánchez, uma mulher inteligente, que converteu seu blog num instrumento de protesto e crítica, sob condições dificílimas. A outra é María Corina Machado, uma deputada de oposição venezuelana, mulher de personalidade extraordinária e grande convicção democrática. Ela fez uma palestra na Argentina sobre o que ocorre na Venezuela. Conclama os democratas de todo o continente a se solidarizarem com o povo venezuelano nesta luta tão heroica – que, ademais, é uma luta por todos nós. Se o chavismo continuar a fazer estragos na Venezuela, todos estamos ameaçados na América Latina.
>>Yoani Sánchez: "Escutar o outro é básico para a democracia"
ÉPOCA – O senhor escreveu no romance Conversa na catedral que as toxinas do autoritarismo demoram a sair do corpo de uma nação. Essas toxinas estão finalmente começando a sair do continente, a América Latina?
Llosa – Acredito que sim. Se você compara a situação hoje com a de 15, 20 anos atrás, há um progresso considerável. Temos muito mais governos democráticos que autoritários. Acontece agora um fenômeno: a existência de uma esquerda democrática, pela primeira vez, na América Latina. Antigamente, a esquerda era autoritária, acreditava em governos firmes, em políticas intervencionistas, no Estado empresário e lidava mal com a diversidade. Isso está desaparecendo pouco a pouco. A esquerda está se tornando civilizada. Da mesma forma, a direita também ficou democrática, bem diferente da direita golpista, militarista do passado. A nova esquerda e a nova direita estão dando à América Latina um dinamismo, um progresso que justifica o otimismo. Os países que seguem o chavismo são poucos e representam um atraso em relação ao restante dos países latino-americanos. São os países democráticos que progridem, não só em termos econômicos, como também políticos.
ÉPOCA – No Brasil, os quatro pré-candidatos à Presidência são de partidos que se definem como “esquerda”. Por que a direita desapareceu por aqui?
Llosa – É um fenômeno bem latino-americano: ninguém quer ser de direita. No máximo, aceita-se ser de centro-esquerda. Mas não importa tanto as etiquetas que os partidos põem, e sim o que fazem. E o que fazem hoje está mais para centro-direita do que para esquerda.
ÉPOCA – Qual sua impressão sobre o legado da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, cuja morte recente tem rendido homenagens, mas também protestos?
Llosa – Vivi na Inglaterra nos anos de Thatcher. Conheço as obras mais positivas dela. Quando ela subiu ao poder, no fim dos anos 1970, a Inglaterra era um país apagado, mergulhado na mediocridade do socialismo. As empresas eram estatizadas. O Estado crescia de uma maneira cancerosa, perdera o nervo criativo e o dinamismo. O país empobrecia e se mediocrizava. A palavra “decadência” exprimia fielmente a realidade inglesa. A transformação promovida por Thatcher foi extraordinária, com as privatizações realizadas com um critério eminentemente social. As empresas foram obrigadas a competir. Acabaram-se os subsídios, o clientelismo, os privilégios. A economia de mercado obviamente trouxe alguns sacrifícios, mas, ao mesmo tempo, gerou um progresso formidável da economia inglesa. Pela primeira vez em muitos anos, a renda per capita da Inglaterra superou a França. A Inglaterra voltou a ter um protagonismo e uma presença internacional extraordinários.
ÉPOCA – Não há nada a criticar em Thatcher? E o apoio ao ditador chileno Augusto Pinochet?
Llosa – O apoio a Pinochet foi lamentável. Ela fez isso para agradecer os serviços que a ditadura chilena prestou à Inglaterra durante a Guerra das Malvinas. Também foram lamentáveis os últimos anos do governo de Thatcher, com os ataques à Europa, numa atitude nacionalista exacerbada. Mas, quando fazemos um balanço dos anos Thatcher, o lado positivo é muito maior.
ÉPOCA – O senhor conheceu Thatcher pessoalmente?
Llosa – Encontrei com ela quatro vezes. A primeira foi num jantar promovido por Hugh Thomas, então ministro dela. Durante a conversa, a submetemos a um verdadeiro exame, educado mas severo. No final, quando ela foi embora, um dos presentes, o professor Isaiah Berlin, disse uma frase que resumiu a impressão geral: “Nothing to be ashamed of”. Nada do que possamos nos envergonhar. A segunda vez encontrei-a em seu gabinete em Downing Street. Eu era candidato à Presidência do Peru e lhe perguntei: “Primeira-ministra, se ganhar a eleição, qual seria a decisão mais importante que eu deveria tomar?”. Nunca esqueci a resposta: “Cerque-se de um grupo leal e corajoso. Porque, se você fizer as reformas liberais, a reação será tão feroz que as piores traições virão de seus amigos, não de seus adversários”. E Thatcher sairia do poder não porque a oposição ganhou, e sim por uma traição interna do Partido Conservador, encabeçada por Geoffrey Howe (chefe de gabinete de Thatcher).
ÉPOCA – E os outros dois encontros?
Llosa – A terceira vez que a vi foi no México. Ela desmaiara durante uma conferência, estava abatida. Lembro-me do marido dela, Dennis Thatcher, que contraíra uma espécie de horror da América Latina depois daquela excursão. Chamava a todos nós de “mexicanos”. Da última vez que a vi, ela estava já fora do poder. Fui a sua casa acompanhado de cubanos exilados, que queriam convidá-la para fazer uma conferência em Miami. Ela se mostrou simpática e divertida, tomou três uísques. Falou muito, contou piadas. No final, acompanhou a gente até a porta e, como uma menina revolucionária, levantou o braço e disse: “Temos de derrotar Castro!”.
ÉPOCA – O que o senhor pensa do governo argentino?
Llosa – A Argentina não merece o governo da senhora Kirchner. É um país que já foi Primeiro Mundo, quando três quartos da Europa pertenciam ao Terceiro Mundo. Foi um país industrial, que teve um sistema educacional fora de série. Foi o primeiro país que acabou com o analfabetismo no mundo – ninguém mais se lembra disso. Como a Argentina pode ter retrocedido dessa maneira? Foi por razões puramente políticas, e isso tem um nome: peronismo. Minha esperança é que venha uma reação das bases. Não há sentido algum a Argentina fazer parte do pelotão dos regimes atrasados, encabeçado por Raúl Castro e Nicolás Maduro. É um anacronismo flagrante, que não faz jus ao país.
>>Ela quer calar a Argentina
>>No reino de Cristina K
ÉPOCA – A união civil entre homossexuais tem sido um tema
bastante discutido na América Latina. Ela foi aprovada no Uruguai, na
Argentina... Llosa – ...e espero que seja aprovada em todos os
países da América Latina. É um ato de justiça contra uma minoria
perseguida, que sofreu terrivelmente ao longo da história, sobretudo em
países machistas como os nossos. Já era hora de haver uma reação
positiva para combater esse preconceito absurdo de que são vítimas os
homossexuais. Os direitos humanos precisam ser compreendidos na América
Latina em toda a sua extensão. O casamento gay é a reparação de uma
injustiça. E é bom que figure na agenda política.
ÉPOCA – O senhor acredita que o papa Francisco, argentino, colaborará com o progresso dos direitos humanos e com as liberdades individuais?
Llosa – As primeiras iniciativas do papa têm sido boas. Ele está se aproximando das pessoas e dando mostras de simplicidade e modéstia. Dá a impressão de ser um homem bem-intencionado, consciente de que a Igreja Católica precisa realizar uma política de abertura e modernização. A Igreja tem se tornado anacrônica e assim continuará, se ele não abordar com coragem as reformas necessárias.
ÉPOCA – O que teria de mudar na Igreja Católica?
Llosa – Duas reformas seriam importantes. A Igreja teria de abolir o celibato clerical, em parte responsável pelos escândalos de pedofilia que tanto dano trouxeram. E teria de dar acesso à mulher a cargos e responsabilidades eclesiásticos. A Igreja mantém uma discriminação antimoderna.
ÉPOCA – Até que ponto ganhar o Prêmio Nobel foi importante para sua vida? Alguns escritores sentiram-se paralisados criativamente com o Nobel, como o irlandês Samuel Beckett. Isso acontece ao senhor, que criticara o prêmio no passado?
Llosa – Ganhar o Nobel foi uma grande surpresa. Estava absolutamente seguro de que nunca me dariam o Nobel. Eu tinha feito todo o necessário para não ganhá-lo, com tudo o que defendo e critico. Olha, o Nobel é uma semana de sonho. A gente vai a Estocolmo para receber o prêmio – e vive uma espécie de realidade divertida, belíssima, simpática. Em seguida, essa semana de sonho dá lugar a um ano de pesadelo. Porque a responsabilidade, as obrigações, as indicações, o assédio dos jornalistas, tudo isso é algo enlouquecedor. É preciso lutar para conseguir algum tempo para poder escrever. É terrível. Estou contente, claro, mas ganhar o Nobel envolve realmente uma pressão terrível. Ganhei, estou feliz, como feliz de ter ganhado outros prêmios ao longo de minha vida, mas já estou velho para ficar vaidoso com um prêmio a menos ou a mais. Continuo a fazer meu trabalho, embora com mais dificuldade, porque a pressão é maior. É importante manter as ilusões e os projetos até o último momento. Lutar contra o tempo. Isso mantém o homem vivo, e isso tenho de sobra.
ÉPOCA – No livro A anatomia de um instante, o escritor espanhol Javier Cercas esmiúça um único acontecimento histórico num livro, o golpe militar contra o presidente Adolfo Suárez em 1981. Existe um tema da história atual que, a seu ver, daria um livro?
Llosa – Eu escolheria esta transição à democracia que acontece na Venezuela. A rejeição do populismo autoritário terá um enorme significado, não apenas para a Venezuela e os países semivassalos da Venezuela – casos de Nicarágua, Bolívia e Equador –, mas também para toda a América Latina. Isso dará um grande impulso à democracia. É um momento nevrálgico, que merece uma reportagem a respeito, como a de Cercas sobre o golpe na Espanha.
ÉPOCA – Não poderia ser um romance, como A festa do bode, que o senhor escreveu sobre a República Dominicana?
Llosa – Poderia, só que o título seria A festa do passarinho.
Mario Vargas Llosa: "Dilma não deveria apoiar uma fraude eleitoral"
O escritor peruano diz que a eleição de Nicolás Maduro foi roubada, defende o casamento gay e acha que a Argentina merecia alguém melhor que Cristina Kirchner
Como o livro se chamaria? O autor de A festa do bode, ficção sobre o ditador dominicano Rafael Trujillo, responde, bem-humorado: A festa do passarinho. O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, durante a campanha eleitoral, disse em discursos que ouvia a voz de Hugo Chávez no canto dos pássaros. Abrindo várias vezes o sorriso largo que se tornou sua marca, Llosa deu a seguinte entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA – Como o senhor analisa a eleição na Venezuela, vencida por Nicolás Maduro por uma diferença de pouco mais de 1 ponto percentual?
Mario Vargas Llosa – Henrique Capriles ganhou as eleições. O uso da máquina do Estado e de seus meios de comunicação foi tão desproporcional que Nicolás Maduro deveria ter vencido o pleito de forma avassaladora. Não foi assim. Houve praticamente um empate. Isso significa claramente que há uma grande reação do povo venezuelano contra o chavismo, contra o que representa Maduro. Por isso, a possibilidade de fraude é grande. Também por isso, me parece justo fazer a recontagem rigorosa dos votos. Os presidentes da América Latina não deveriam legitimar uma possível fraude eleitoral, indo assistir à entronização de Maduro. Seria um ato de cumplicidade contra o povo venezuelano, que claramente pede a democratização, a abertura, a mudança de política. É um momento importante, talvez fundamental, na história da América Latina.
>>Dividida, Venezuela mantém-se calma após semana tensa
ÉPOCA – A presidente Dilma Rousseff enviou cumprimentos a Maduro pela vitória, logo que saíram os primeiros resultados das eleições. Isso é uma forma de apoio?
Llosa – É um ato de cumplicidade com o que está ocorrendo na Venezuela. É lamentável isso partir de um governo democrático. Dilma não deveria apoiar uma fraude eleitoral. Ela não é o único caso. Todos os que fazem isso me parecem igualmente lamentáveis. Deveria haver maior coerência entre a política internacional e a política nacional por parte dos governos democráticos. Os governos que praticam a política chavista, que querem o socialismo autoritário, entendo que se solidarizem com Maduro. Mas governos que praticam internamente a democracia agem de forma absurda quando se tornam cúmplices de governos autoritários, mesmo que seja para aplacar internamente seus radicais. Felizmente, alguns mostram independência. É positiva a atitude da OEA (Organização dos Estados Americanos), ao pedir a recontagem de votos. E devo felicitar governos como o da Espanha, que não enviarão ninguém para representar o país na posse de Maduro, enquanto não se esclarecer o que aconteceu de fato nessas eleições.
ÉPOCA – O socialismo fascinou muitos escritores na América Latina. O caso mais conhecido é o colombiano Gabriel García Márquez, que apoiou o regime cubano. No caso da Venezuela de Chávez, não apareceram muitos escritores para apoiar o regime. O que mudou?
Llosa – Mudou algo muito importante. É a primeira vez que um governo populista e autoritário conta com a oposição de praticamente toda a classe intelectual. As universidades, que costumavam ser radicais na Venezuela, são praticamente todas antichavistas, estão na vanguarda na luta pela democratização. Não conheço um escritor venezuelano importante que não esteja combatendo em favor da democratização. A única exceção é o romancista Luís Britto Garcia. É um sintoma alentador, porque, no passado, a intelectualidade latino-americana cometeu a insensatez de apoiar regimes como Cuba, a ditatura mais longa que o continente já teve em toda a sua história.
Llosa – Sim, também faço minha autocrítica. Reconheço que, quando jovem, senti um entusiasmo acrítico com o que acontecia. No fim dos anos 1950, quando a América Latina era um continente de regimes militares e os Estados Unidos apareciam como aliados dos ditadores, Cuba parecia representar a alternativa, o progresso, a democracia, a liberdade. Por outro lado, parecia uma revolução que não tinha sido feita pelo stalinismo e o Partido Comunista, e sim por jovens idealistas, socialistas libertários. Estávamos enganados sobre a Revolução Cubana no início. Havia um contexto que explicava esse entusiasmo. É difícil manter a ilusão 54 anos depois. Cuba é uma ditadura que destruiu o espírito crítico, empobreceu selvagemente o país. O país depende hoje da caridade venezuelana. Ao lado da Coreia do Norte, Cuba representa o maior anacronismo de nosso tempo. Esses regimes não são modelos para ninguém. Vivem o final de seus ciclos, como aconteceu com todos os regimes socialistas autoritários do mundo.
ÉPOCA – Há, hoje, vários intelectuais latino-americanos comprometidos com a causa democrática, inclusive em Cuba.
Llosa – Sim, claro. Recentemente conheci duas mulheres extraordinárias. Uma delas é a cubana Yoani Sánchez, uma mulher inteligente, que converteu seu blog num instrumento de protesto e crítica, sob condições dificílimas. A outra é María Corina Machado, uma deputada de oposição venezuelana, mulher de personalidade extraordinária e grande convicção democrática. Ela fez uma palestra na Argentina sobre o que ocorre na Venezuela. Conclama os democratas de todo o continente a se solidarizarem com o povo venezuelano nesta luta tão heroica – que, ademais, é uma luta por todos nós. Se o chavismo continuar a fazer estragos na Venezuela, todos estamos ameaçados na América Latina.
>>Yoani Sánchez: "Escutar o outro é básico para a democracia"
ÉPOCA – O senhor escreveu no romance Conversa na catedral que as toxinas do autoritarismo demoram a sair do corpo de uma nação. Essas toxinas estão finalmente começando a sair do continente, a América Latina?
Llosa – Acredito que sim. Se você compara a situação hoje com a de 15, 20 anos atrás, há um progresso considerável. Temos muito mais governos democráticos que autoritários. Acontece agora um fenômeno: a existência de uma esquerda democrática, pela primeira vez, na América Latina. Antigamente, a esquerda era autoritária, acreditava em governos firmes, em políticas intervencionistas, no Estado empresário e lidava mal com a diversidade. Isso está desaparecendo pouco a pouco. A esquerda está se tornando civilizada. Da mesma forma, a direita também ficou democrática, bem diferente da direita golpista, militarista do passado. A nova esquerda e a nova direita estão dando à América Latina um dinamismo, um progresso que justifica o otimismo. Os países que seguem o chavismo são poucos e representam um atraso em relação ao restante dos países latino-americanos. São os países democráticos que progridem, não só em termos econômicos, como também políticos.
ÉPOCA – No Brasil, os quatro pré-candidatos à Presidência são de partidos que se definem como “esquerda”. Por que a direita desapareceu por aqui?
Llosa – É um fenômeno bem latino-americano: ninguém quer ser de direita. No máximo, aceita-se ser de centro-esquerda. Mas não importa tanto as etiquetas que os partidos põem, e sim o que fazem. E o que fazem hoje está mais para centro-direita do que para esquerda.
ÉPOCA – Qual sua impressão sobre o legado da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, cuja morte recente tem rendido homenagens, mas também protestos?
Llosa – Vivi na Inglaterra nos anos de Thatcher. Conheço as obras mais positivas dela. Quando ela subiu ao poder, no fim dos anos 1970, a Inglaterra era um país apagado, mergulhado na mediocridade do socialismo. As empresas eram estatizadas. O Estado crescia de uma maneira cancerosa, perdera o nervo criativo e o dinamismo. O país empobrecia e se mediocrizava. A palavra “decadência” exprimia fielmente a realidade inglesa. A transformação promovida por Thatcher foi extraordinária, com as privatizações realizadas com um critério eminentemente social. As empresas foram obrigadas a competir. Acabaram-se os subsídios, o clientelismo, os privilégios. A economia de mercado obviamente trouxe alguns sacrifícios, mas, ao mesmo tempo, gerou um progresso formidável da economia inglesa. Pela primeira vez em muitos anos, a renda per capita da Inglaterra superou a França. A Inglaterra voltou a ter um protagonismo e uma presença internacional extraordinários.
Llosa – O apoio a Pinochet foi lamentável. Ela fez isso para agradecer os serviços que a ditadura chilena prestou à Inglaterra durante a Guerra das Malvinas. Também foram lamentáveis os últimos anos do governo de Thatcher, com os ataques à Europa, numa atitude nacionalista exacerbada. Mas, quando fazemos um balanço dos anos Thatcher, o lado positivo é muito maior.
ÉPOCA – O senhor conheceu Thatcher pessoalmente?
Llosa – Encontrei com ela quatro vezes. A primeira foi num jantar promovido por Hugh Thomas, então ministro dela. Durante a conversa, a submetemos a um verdadeiro exame, educado mas severo. No final, quando ela foi embora, um dos presentes, o professor Isaiah Berlin, disse uma frase que resumiu a impressão geral: “Nothing to be ashamed of”. Nada do que possamos nos envergonhar. A segunda vez encontrei-a em seu gabinete em Downing Street. Eu era candidato à Presidência do Peru e lhe perguntei: “Primeira-ministra, se ganhar a eleição, qual seria a decisão mais importante que eu deveria tomar?”. Nunca esqueci a resposta: “Cerque-se de um grupo leal e corajoso. Porque, se você fizer as reformas liberais, a reação será tão feroz que as piores traições virão de seus amigos, não de seus adversários”. E Thatcher sairia do poder não porque a oposição ganhou, e sim por uma traição interna do Partido Conservador, encabeçada por Geoffrey Howe (chefe de gabinete de Thatcher).
ÉPOCA – E os outros dois encontros?
Llosa – A terceira vez que a vi foi no México. Ela desmaiara durante uma conferência, estava abatida. Lembro-me do marido dela, Dennis Thatcher, que contraíra uma espécie de horror da América Latina depois daquela excursão. Chamava a todos nós de “mexicanos”. Da última vez que a vi, ela estava já fora do poder. Fui a sua casa acompanhado de cubanos exilados, que queriam convidá-la para fazer uma conferência em Miami. Ela se mostrou simpática e divertida, tomou três uísques. Falou muito, contou piadas. No final, acompanhou a gente até a porta e, como uma menina revolucionária, levantou o braço e disse: “Temos de derrotar Castro!”.
ÉPOCA – O que o senhor pensa do governo argentino?
Llosa – A Argentina não merece o governo da senhora Kirchner. É um país que já foi Primeiro Mundo, quando três quartos da Europa pertenciam ao Terceiro Mundo. Foi um país industrial, que teve um sistema educacional fora de série. Foi o primeiro país que acabou com o analfabetismo no mundo – ninguém mais se lembra disso. Como a Argentina pode ter retrocedido dessa maneira? Foi por razões puramente políticas, e isso tem um nome: peronismo. Minha esperança é que venha uma reação das bases. Não há sentido algum a Argentina fazer parte do pelotão dos regimes atrasados, encabeçado por Raúl Castro e Nicolás Maduro. É um anacronismo flagrante, que não faz jus ao país.
>>Ela quer calar a Argentina
>>No reino de Cristina K
ÉPOCA – O senhor acredita que o papa Francisco, argentino, colaborará com o progresso dos direitos humanos e com as liberdades individuais?
Llosa – As primeiras iniciativas do papa têm sido boas. Ele está se aproximando das pessoas e dando mostras de simplicidade e modéstia. Dá a impressão de ser um homem bem-intencionado, consciente de que a Igreja Católica precisa realizar uma política de abertura e modernização. A Igreja tem se tornado anacrônica e assim continuará, se ele não abordar com coragem as reformas necessárias.
ÉPOCA – O que teria de mudar na Igreja Católica?
Llosa – Duas reformas seriam importantes. A Igreja teria de abolir o celibato clerical, em parte responsável pelos escândalos de pedofilia que tanto dano trouxeram. E teria de dar acesso à mulher a cargos e responsabilidades eclesiásticos. A Igreja mantém uma discriminação antimoderna.
ÉPOCA – Até que ponto ganhar o Prêmio Nobel foi importante para sua vida? Alguns escritores sentiram-se paralisados criativamente com o Nobel, como o irlandês Samuel Beckett. Isso acontece ao senhor, que criticara o prêmio no passado?
Llosa – Ganhar o Nobel foi uma grande surpresa. Estava absolutamente seguro de que nunca me dariam o Nobel. Eu tinha feito todo o necessário para não ganhá-lo, com tudo o que defendo e critico. Olha, o Nobel é uma semana de sonho. A gente vai a Estocolmo para receber o prêmio – e vive uma espécie de realidade divertida, belíssima, simpática. Em seguida, essa semana de sonho dá lugar a um ano de pesadelo. Porque a responsabilidade, as obrigações, as indicações, o assédio dos jornalistas, tudo isso é algo enlouquecedor. É preciso lutar para conseguir algum tempo para poder escrever. É terrível. Estou contente, claro, mas ganhar o Nobel envolve realmente uma pressão terrível. Ganhei, estou feliz, como feliz de ter ganhado outros prêmios ao longo de minha vida, mas já estou velho para ficar vaidoso com um prêmio a menos ou a mais. Continuo a fazer meu trabalho, embora com mais dificuldade, porque a pressão é maior. É importante manter as ilusões e os projetos até o último momento. Lutar contra o tempo. Isso mantém o homem vivo, e isso tenho de sobra.
ÉPOCA – No livro A anatomia de um instante, o escritor espanhol Javier Cercas esmiúça um único acontecimento histórico num livro, o golpe militar contra o presidente Adolfo Suárez em 1981. Existe um tema da história atual que, a seu ver, daria um livro?
Llosa – Eu escolheria esta transição à democracia que acontece na Venezuela. A rejeição do populismo autoritário terá um enorme significado, não apenas para a Venezuela e os países semivassalos da Venezuela – casos de Nicarágua, Bolívia e Equador –, mas também para toda a América Latina. Isso dará um grande impulso à democracia. É um momento nevrálgico, que merece uma reportagem a respeito, como a de Cercas sobre o golpe na Espanha.
ÉPOCA – Não poderia ser um romance, como A festa do bode, que o senhor escreveu sobre a República Dominicana?
Llosa – Poderia, só que o título seria A festa do passarinho.
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