Belo Monte de concreto e aço
A maior obra em andamento no Brasil custará US$ 30 bilhões, emprega 22 mil trabalhadores – e movimenta em níveis inéditos o mercado de caminhões pesados
LUIZ MAKLOUF CARVALHO
23/01/2014 07h30
- Atualizado em
23/01/2014 07h43
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Capítulo 1
A usina que viaja de caminhão
"Te amo. Fica com Deus. E até o ano que vem.” Ainda era 6 de novembro – faltando quase dois meses para o Natal e o Réveillon –, mas foi com toda essa antecedência, numa ligação do celular, que o motorista pernambucano Lucinaldo Alves do Nascimento, ou Naldo, despediu-se de Viviane, sua mulher e mãe de um casal de filhos. Ela estava na boa casa que estão acabando de construir, no Recife. Ele, em Taubaté, grande polo industrial de São Paulo, a 130 quilômetros da capital. Mal o dia amanhecera, com chuva, Naldo saíra do pátio de estacionamento da fábrica da Alstom no volante de um caminhão Scania com motor de 440 cavalos. É força equivalente a 23 motores 1.0, capaz de puxar, por exemplo, 160 carros populares. A versão básica de um novo custa R$ 400 mil. Puxava, no caso, uma prancha de madeira e ferro com 30 metros de comprimento por 3,80 metros de largura, composição sustentada por 34 pneus. Em cima da prancha, ou carreta, uma monumental peça de aço pesando 72 toneladas.
Naldo dormira na cama da própria cabine – sua quitinete pelos previstos 55 dias que levaria para chegar ao destino: primeiro Belém, no Pará, 3.000 quilômetros depois, e, por fim, com mais três dias navegando de balsa, na maior e mais cara obra de infraestrutura em andamento no Brasil – a hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Rio Xingu, no Pará. Tem, hoje, 22 mil trabalhadores bons de greve em seus três canteiros de obras nos municípios de Vitória do Xingu e Altamira. Custará R$ 30,6 bilhões, em números de hoje, a maior parte financiada pelo BNDES (que não quis dar entrevista para esta reportagem).
O artefato colossal que a carreta de Naldo transporta – a morosos 10, 20, no máximo 40 quilômetros por hora – é parte de uma das 24 turbinas de dois tipos que a hidrelétrica terá, 18 na usina de Belo Monte, seis na usina de Pimental, as duas que formam o complexo hidroenergético. A peça completa, um pré-distribuidor, pesa 267 toneladas (equivalentes a, por exemplo, 54 elefantes adultos). Sua função, grosso modo, é distribuir e dirigir o fluxo de água em torno do rotor da turbina. Saiu do parque industrial da Alstom, naquele começo de novembro, dividido em seis partes e embarcado em seis carretas da empresa Transpes, uma das cinco maiores do país no transporte de cargas pesadas.
A Transpes tem 750 caminhões como esses. Sua assessoria informou que só para o transporte de turbinas e geradores para Belo Monte e Pimental a estimativa é de 7 mil viagens pelos próximos quatro anos. A grande obra – e mais as que futuramente virão, com as anunciadas hidrelétricas do Tapajós – também incrementou o mercado de caminhões pesados e pesadíssimos, setor que cresceu recordistas 132% no ano passado (números de novembro). A Scania é a líder, seguida de Volvo, Mercedes, Iveco, Volkswagen e Ford. O R-440 que Naldo pilota, por um salário mensal de quase R$ 6 mil, é o caminhão mais emplacado do país, com 9.498 unidades em circulação.
>> No Blog do Planeta: Por que comunidades locais temem as grandes obras?A usina que viaja de caminhão
"Te amo. Fica com Deus. E até o ano que vem.” Ainda era 6 de novembro – faltando quase dois meses para o Natal e o Réveillon –, mas foi com toda essa antecedência, numa ligação do celular, que o motorista pernambucano Lucinaldo Alves do Nascimento, ou Naldo, despediu-se de Viviane, sua mulher e mãe de um casal de filhos. Ela estava na boa casa que estão acabando de construir, no Recife. Ele, em Taubaté, grande polo industrial de São Paulo, a 130 quilômetros da capital. Mal o dia amanhecera, com chuva, Naldo saíra do pátio de estacionamento da fábrica da Alstom no volante de um caminhão Scania com motor de 440 cavalos. É força equivalente a 23 motores 1.0, capaz de puxar, por exemplo, 160 carros populares. A versão básica de um novo custa R$ 400 mil. Puxava, no caso, uma prancha de madeira e ferro com 30 metros de comprimento por 3,80 metros de largura, composição sustentada por 34 pneus. Em cima da prancha, ou carreta, uma monumental peça de aço pesando 72 toneladas.
Naldo dormira na cama da própria cabine – sua quitinete pelos previstos 55 dias que levaria para chegar ao destino: primeiro Belém, no Pará, 3.000 quilômetros depois, e, por fim, com mais três dias navegando de balsa, na maior e mais cara obra de infraestrutura em andamento no Brasil – a hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Rio Xingu, no Pará. Tem, hoje, 22 mil trabalhadores bons de greve em seus três canteiros de obras nos municípios de Vitória do Xingu e Altamira. Custará R$ 30,6 bilhões, em números de hoje, a maior parte financiada pelo BNDES (que não quis dar entrevista para esta reportagem).
O artefato colossal que a carreta de Naldo transporta – a morosos 10, 20, no máximo 40 quilômetros por hora – é parte de uma das 24 turbinas de dois tipos que a hidrelétrica terá, 18 na usina de Belo Monte, seis na usina de Pimental, as duas que formam o complexo hidroenergético. A peça completa, um pré-distribuidor, pesa 267 toneladas (equivalentes a, por exemplo, 54 elefantes adultos). Sua função, grosso modo, é distribuir e dirigir o fluxo de água em torno do rotor da turbina. Saiu do parque industrial da Alstom, naquele começo de novembro, dividido em seis partes e embarcado em seis carretas da empresa Transpes, uma das cinco maiores do país no transporte de cargas pesadas.
A Transpes tem 750 caminhões como esses. Sua assessoria informou que só para o transporte de turbinas e geradores para Belo Monte e Pimental a estimativa é de 7 mil viagens pelos próximos quatro anos. A grande obra – e mais as que futuramente virão, com as anunciadas hidrelétricas do Tapajós – também incrementou o mercado de caminhões pesados e pesadíssimos, setor que cresceu recordistas 132% no ano passado (números de novembro). A Scania é a líder, seguida de Volvo, Mercedes, Iveco, Volkswagen e Ford. O R-440 que Naldo pilota, por um salário mensal de quase R$ 6 mil, é o caminhão mais emplacado do país, com 9.498 unidades em circulação.
À carreta de Naldo coube a parte maior e mais pesada do pré-distribuidor – chamada de bequilha. Um metro mais larga que a bitola da prancha, exigiu, por todo o trajeto, a companhia de um carro batedor. Sua motorista nesse primeiro trecho chegou ao pátio de estacionamento de Taubaté quando ainda estava escuro – e Naldo ainda dormia na cabine. “Teodora Emídia Verlengia”, apresentou-se, em serelepes e simpáticos 55 anos, viúva e avó de dois meninos. “A mulher tem coragem!”, disse Naldo, quando Teodora disparou a sirene e fechou o trânsito para que ele pudesse manobrar o possante e começar a peregrinação.
A empresa responsável pela construção e operação, por 35 anos, daquela que será a maior usina hidrelétrica 100% brasileira e a terceira maior do mundo (depois de Três Gargantas, na China, e da Itaipu binacional) é a Norte Energia S.A. O maior acionista da Norte Energia é o Grupo Eletrobras (49,98%). Depois vêm os fundos de pensão Petros e Funcef (20%), a Neoenergia (10%), a Cemig e a Light (9,77%), a Vale (9%), a Sinobras (1%) e a JMalucelli Energia (0,25%). Pelas condições da outorga, o montante dos contratos de venda de energia está estimado em R$ 62 bilhões, referentes ao fornecimento de 795 mil megawatts-hora. Em troca, a União receberá R$ 16,6 milhões por ano, além de R$ 200 milhões divididos com o Estado do Pará e com os 11 municípios da área afetada.
Dos R$ 30 bilhões que a obra custará, em números de hoje, R$ 5 bilhões vão para a área socioambiental. O Ibama concedeu as licenças ambientais e de execução das obras – que começaram em junho de 2011 –, com a exigência do cumprimento de 40 condicionantes. A Norte Energia afirma que as executa dentro do cronograma. O Ministério Público Federal não concorda e pede, na Justiça, a paralisação das obras e do repasse dos recursos do BNDES. A batalha jurídica, que também envolve a Advocacia-Geral da União, não tem data para terminar.
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O engenheiro eletricista Wellington Ferreira, de 59 anos, 37 deles mexendo com hidrelétricas, é o diretor de fornecimento e montagem da Norte Energia. Ele disse a ÉPOCA que até novembro do ano passado 160 carretas como a de Naldo já tinham chegado ao porto de Belo Monte, no município de Vitória do Xingu. Em dezembro, outras 60 estavam nas rodovias transportando formidáveis peças de aço e concreto para comportas, turbinas, geradores, casas de força e outros monumentais mecanismos que farão Belo Monte ter uma capacidade instalada de 11.233,1 megawatts de potência e geração anual média de 4.571 megawatts. Nas contas da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia, é quantidade suficiente para atender 18 milhões de residências. O reservatório terá uma área de 503 quilômetros quadrados – dezenas de vezes menor que o previsto nos primeiros projetos, anos atrás. A previsão é que a primeira máquina comece a operar em janeiro de 2015 e a última em janeiro de 2019.
“Com a chegada de grandes peças das turbinas geradoras, Belo Monte entrou em outra etapa, irreversível”, diz Ferreira. A previsão da Norte Energia é receber 9.300 carretas, com estimadas 140.000 toneladas de equipamentos, nos próximos cinco anos. “A montagem do que já chegou e está chegando começa entre janeiro e fevereiro.” Ferreira estava às voltas, na segunda quinzena de dezembro, com a disputadíssima concorrência para a montagem de toda essa ciclópica parafernália de concreto e metal. Dez consórcios disputavam. “O pau está cantando, é um puxando o tapete do outro”, contou. A divulgação do resultado está prevista para este mês.
Pelo valor contratado de R$ 3,5 bilhões – é o orçamento anual de uma capital como Manaus –, elas fabricam, cada qual em seu parque industrial, 14 das 18 unidades geradoras do sítio Belo Monte e seis conjuntos de turbina- gerador que irão para o sítio Pimental. As primeiras peças começaram a ser enviadas em abril do ano passado – quando a Alstom despachou o revestimento do pilar de sucção. É uma grande estrutura de concreto, com revestimento de aço. Pesa 13 toneladas, tem quase 9 metros de altura e parece um casco de navio. Com a explicação do engenheiro Marcelo Ferrarezi, diretor da Alstom para o projeto Belo Monte, fica mais fácil entender sua utilidade. “O pilar contém a força da água depois que ela cai e passa pelas turbinas”, diz ele na fábrica de Taubaté. “Essa contenção é importante para que o retorno da água ao rio seja feito com controle e o mínimo de impacto sobre o leito do canal de fuga.”
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Quarenta carretas saíram da Alstom Taubaté para Belo Monte no ano passado. Para este janeiro está previsto o embarque de parte da tubulação da turbina da primeira unidade geradora – a caixa espiral. É um conjunto mastodôntico de 500 toneladas, com a função de conduzir a água para o centro da turbina. Seu formato de caracol faz com que a água se movimente numa velocidade maior, em forma de espiral, para ter maior aproveitamento da capacidade energética. Precisará de 20 carretas para ser transportado. No total da encomenda da Norte Energia – pela qual levará R$ 1,3 bilhão dos R$ 3,5 bilhões –, a Alstom estima o uso de 550 carretas, com 10.000 toneladas de equipamentos.
“A represa de Belo Monte, o que vai segurar a água, está aqui”, disse Everton Mônico, em Araraquara, a 270 quilômetros de São Paulo, e a mais de 3.000 do canteiro de obras da hidrelétrica. Mônico mostrou dezenas de peças de uma comporta de aço, prontas para embarcar, que ocupavam os dois pátios de armazenagem do parque industrial da Iesa, onde ele é gerente de negócios hidromecânicos. Subsidiária da Andritz Hydro Inepar, a outra empresa do consórcio eletromecânico de Belo Monte, a Iesa é a fabricante de três unidades geradoras e de parte das comportas da hidrelétrica do Xingu. Mônico estima que as 60 peças arrumadas no pátio ao ar livre pesam 1.400 toneladas. É quase toda a primeira comporta, da unidade geradora número 1, a primeira que será montada. As outras 17 comportas têm mais 18 meses para ficar prontas. “Vamos precisar de 240 carretas para levá-las a Belo Monte”, afirmou.
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Da Iesa, saíram, no dia 12 de novembro, duas carretas Scania da mesma Transpes. Uma carregava uma enormidade chamada aranha do rotor, para uma das turbinas do sítio Pimental. Bem maior que a peça de Naldo, só podia circular com dois carros batedores. “Talvez eu chegue antes do Natal”, sonhava seu motorista, o mineiro Miguel Garcia Neto, de 57 anos, os últimos 15 transportando cargas especiais. A outra composição carregava uma peça menor, mas não menos vistosa – conhecida como segmento da coluna central de uma das turbinas do sítio Pimental. Recoberta por dezenas de enormes pinos de aço, passaria facilmente por uma bela escultura ultra punk pós-moderna, seja lá o que isso quer dizer. Mas seu destino, em Belo Monte, será desaparecer para sempre sob camadas e camadas de concreto.
“Estamos em dia com o cronograma da obra”, diz o engenheiro eletricista Geraldo Nascimento Ramos, da Andritz. Ramos, de 37 anos e sete de casa, é o coordenador de fornecimento do gerador do sítio Pimental. O motorista da carreta que levará a escultura é seu xará Geraldo Lima Figueiredo, de 52 anos e 33 de profissão. Para quem já fez viagem que durou quatro meses, essa é fichinha. “Vou andar mais, porque a carga coube na largura da carreta, e por isso não precisa de carro batedor”, disse, com a certeza de que estaria em casa no Natal. Como de fato: sua carreta foi uma das 17 que desembarcaram da balsa, no porto de Vitória do Xingu, no dia 4 de dezembro.
A balsa tem 69 metros de comprimento por 18,5 metros de largura e é puxada por um empurrador com sete tripulantes e motor de 700 cavalos, diz José Souza Soares, gerente comercial da empresa Linave, uma das que fazem esse transporte fluvial, sediada em Belém. No final da tarde de 29 de novembro, Soares embarcava as 17 carretas com direção a Belo Monte. Elas ocuparam o lugar de 30 carros. Cada vaga – ou praça – custa R$ 5.160. Uma carreta que ocupe três praças pagará, entre frete e imposto, perto de R$ 16 mil. Entre maio e dezembro, as balsas da Linave, uma das empresas contratadas pelos fabricantes, levaram 90 carretas para o porto de Belo Monte. Pelo que está contratado até aqui, só com a Linave serão 1.100 carretas embarcadas até o final da obra.
O que mais impressiona no equipamento pesado com que a Voith Hydro cria e formata essas e outras peças para a hidrelétrica da Norte Energia é uma máquina que faz o fresamento de agigantadas pás de aço. Acoplada a uma ponte rolante que desliza sobre a prateada e reluzente superfície de aço inox, ainda áspera, a máquina vai tirando cavacos de aço, precisa e milimetricamente, até que a pá esteja completamente lisa. “É a única no Brasil”, diz o engenheiro mecatrônico João Marcos Tafuri, de 30 anos, há seis na Voith Hydro do Jaraguá, onde é supervisor de usinagem e ferramentas. Custo da máquina: u15 milhões. No meio do ano passado, 13 dessas pás, pesando 18 toneladas, ocuparam 13 carretas em direção a Belo Monte. Quem opera a máquina – teclando num painel de controle na sala lateral – é o neto de lituanos Arcílio Slapelies. Técnico em mecânica e fresador especializado, está na Voith há 26 de seus 50 anos.
Nos números de Wellington Ferreira, o diretor de montagem, a primeira unidade geradora de Belo Monte já está 64% pronta para receber os equipamentos. A segunda, a terceira e quarta unidades estavam entre 30% e 48% prontas. “O avanço físico da obra como um todo está em 32%, com o cronograma perfeitamente em dia, e até com alguma antecedência”, diz Ferreira no dezembro que passou.
Capítulo 2
A ferroada da arraia e o "Belo Monte de violências"
“Prezado Dr. Felício,
De ordem do Desembargador Federal Souza Prudente, encaminho as ementas do processo julgado ontem da Norte Energia. Att. Maria do Socorro Matos, secretária.”
Foi com esse e-mail, enviado na tarde de 17 de dezembro, que o desembargador Antônio Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, informou o procurador da República Felício Pontes sobre duas decisões que mandaram parar imediatamente as obras de Belo Monte e o repasse de recursos do BNDES para a Norte Energia. As decisões – anexadas ao e-mail – foram tomadas, por unanimidade, na véspera, dia 16, pela quinta turma do TRF 1 – formada por Souza Prudente, relator dos processos, e pelos desembargadores João Batista Moreira e Salete Almeida. Três dias depois, elas foram derrubadas, por uma maioria de 11 a 1, na corte especial do mesmo TRF 1.
Pontes é o autor, pelo Ministério Público Federal (MPF), da ação principal desse caso, mais um processo entre os quase 30 do MPF contra a obra. Pede, nessa, a nulidade de duas licenças de instalação e uma de desmatamento emitidas pelo Ibama à Norte Energia, todas em 2011. Alega que foram emitidas sem o integral cumprimento das condicionantes estipuladas na licença prévia do órgão ambiental. Em 25 de outubro do ano passado, o desembargador Souza Prudente – de há muito publicamente contrário à hidrelétrica – acatou liminarmente os pedidos de Felício Pontes. Quatro dias depois, o desembargador Mário Cesar Pinheiro, presidente do TRF 1, cassou a liminar do colega. Prudente voltou à carga com a decisão da quinta turma, que comunicou ao procurador Pontes já no dia seguinte. Os 11 a 1 da corte especial deram a vitória ao governo e à Norte Energia.
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Pontes e outros procuradores da República já ajuizaram, até aqui, 25 ações contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. O governo se defende com a Advocacia-Geral da União, a AGU, do ministro Luiz Inácio Adams. Das 25 ações, segundo a AGU, 13 já receberam sentença de primeira instância pela improcedência ou extinção. Dessas, quatro transitaram em julgado (quando não cabe mais recurso). Nas demais, há recursos pendentes de julgamento e ainda não houve sentença. “Todas as sentenças e decisões proferidas até o momento foram favoráveis ao empreendimento”, disse o ministro Adams. Ele acha que Belo Monte é vítima de “um alto grau de incompreensão” e que “existe uma ideologização do tema por parte dos agentes públicos envolvidos”. É como chama procuradores como Pontes e Ubiratan Cazetta – outra pedra nas botas na Norte Energia. “Também temos decisões favoráveis, e essa pecha da ideologização só serve para fugir dos argumentos que apresentamos”, disse o procurador Cazetta.
Em dezembro de 2011, a AGU apresentou uma “reclamação disciplinar” contra Pontes no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Alegou duas condutas “não condizentes com a função de procurador da República”: um vídeo (disponível na internet) em que Pontes aconselha índios da etnia xikrim a exigir mais dinheiro da Norte Energia; e o patrocínio de uma cartilha incitadora contra “os crimes hidrelétricos na bacia do Tapajós”, próximo round da batalha judicial, no momento em banho-maria. A AGU pede o “afastamento institucional de Pontes de todo e qualquer caso que envolva a construção de usinas hidrelétricas”.
A Corregedoria do Ministério Público Federal mandou arquivar a representação. A AGU recorreu e ganhou. O processo começou a ser julgado em 18 de novembro do ano passado – e ainda não terminou. O relator, conselheiro Jarbas Soares, votou, em 19 páginas, pelo recebimento parcial da representação da AGU. “Entendo, no caso concreto, que o recorrido (Felício Pontes) extrapolou o exercício de suas funções e incorreu em excesso ao financiar cartilhas extra-autos contrárias à obra que visa à construção das usinas hidrelétricas de Belo Monte e Tapajós, exatamente por atuar funcionalmente nos correspondentes processos judiciais.” Soares quer determinar que o colega “se abstenha de praticar atos, estranhos ao seu mister ministerial quanto aos fatos relacionados às usinas de Belo Monte e Tapajós que estejam sobre a sua apreciação profissional”. O conselheiro Mário Bonsaglia – que, no passado, já teve seus dias de Pontes – votou contra o relator. O conselheiro Luiz Moreira pediu vista dos autos. O julgamento prosseguirá nas próximas sessões. “Não é única representação da AGU contra mim e outros procuradores”, afirma Pontes, de 48 anos de idade e 16 como procurador da República. “O governo tem perdido no mérito e faz isso para tentar desmoralizar o MPF.”
Ambos estavam representados no seminário de Bruxelas. O governo, pelo presidente da Empresa de Pesquisa Energética, o engenheiro Maurício Tomalsquim. Com quase 2 metros de altura, ele é a Graça Foster da presidente Dilma na área de energia elétrica. Está com ela desde os tempos do Minas e Energia – e é respeitado no mercado de energia pelo conhecimento técnico da área. Exibindo um gráfico atrás do outro, defendeu a necessidade energética da hidrelétrica e seus benefícios socioambientais. “Para não entrar na área em que vivem 225 indígenas, na Volta Grande do Xingu, Belo Monte está construindo um canal que custará US$ 1,8 bilhão, maior do que o Canal do Panamá”, disse. Rebateu, ponto a ponto, os argumentos de Pontes e das ONGs presentes. Vê-se, no vídeo, que fez um esforço para represar as respostas na frieza dos números e da análise técnica. Ao final, a comporta vazou: “Nunca ouvi tanta desinformação como nessa mesa aqui. Estou atordoado e peço que realmente conheçam um pouco mais da política energética brasileira”. Pontes voltou a falar. Ignorou as estocadas de Tomalsquim e não o contestou especificamente em nada. “Os argumentos estão todos no site do MPF na internet”, disse. A. Perravega, de uma ONG francesa, chamou o varapau da EPE de “arrogante”. Dona Antônia Melo, de uma ONG regional, disse que “povos estão sendo destruídos” e que “arrogante é a Norte Energia com seu canteiro de desastres”. Tomalsquim ainda falou, numa tentativa de réplica. Quando disse a frase “todo extremismo está errado”, a mesa cortou sua palavra.
O representante da Norte Energia foi o engenheiro João dos Reis Pimentel, diretor socioambiental da megaobra. Ele rebateu as críticas. “Belo Monte é um exemplo de usina ecologicamente correta e socialmente correta”, disse. Enumerou os benefícios ambientais e sociais executados: hospitais e unidades básicas de saúde, obras de saneamento básico (entre elas aterros sanitários), redução da malária em 80%, novos bairros com casas de 63 metros quadrados...
“Fiquei assustado com a desinformação e as aleivosias”, diz Pimentel. “A Norte Energia tem respostas claras para todos os questionamentos que eles fazem – mas isso não faz diferença, porque a questão é ideológica, e o objetivo é criar constrangimento para o governo brasileiro.”
“Fico apreensivo cada vez que sai uma liminar, mas não tenho ilusões: será assim até o fim da obra”, diz o engenheiro Duílio Marcos de Figueiredo, presidente da Norte Energia desde agosto de 2012. “Continuaremos lutando, dentro das regras do jogo, para mostrar que Belo Monte já é irreversível e, a par dos impactos que provoca, só traz benefícios para a região e para o Brasil.”
Figueiredo despacha em Brasília – onde toda segunda-feira há uma reunião dos sete diretores –, mas passa dois ou três dias por mês em Belo Monte. No final da tarde em que falou com ÉPOCA, pelo telefone, no começo de dezembro, acabara de fazer uma maratona de visitas aos três canteiros de obras. “Belo Monte arrancou de uma maneira decisiva – e atingiu velocidade de cruzeiro”, disse. “Na parte socioambiental, já investimos mais de R$ 1 bilhão dos R$ 5 bilhões projetados. O Ministério Público deveria procurar conhecer a realidade em detalhes, o antes e o depois, para se posicionar com mais objetividade e menos emoção.” Figueiredo destacou o investimento na área de saúde nos 11 municípios do entorno: três hospitais em construção (Altamira, Vitória do Xingu e Anapu), 27 unidades básicas de saúde construídas e 28 equipadas, 11 ambulâncias, quatro ambulanchas e uma UTI móvel doadas. Até novembro de 2013, o investimento realizado na área de saúde foi de R$ 122 milhões. Para este ano, a previsão é de R$ 73 milhões. “Uma usina não é só uma planta geradora de energia, mas um elemento de transformação social”, diz Figueiredo. “O foco dos questionamentos deveria ser o cumprimento do nosso compromisso ambiental e social e das condicionantes exigidas pelo Ibama, que estamos empenhados em realizar.”
A obra é acompanhada, desde 2010, por uma instância chamada Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu (PDRS-X). É formada por ONGs, sindicatos, prefeituras dos 11 municípios do entorno, governo do Estado e governo Federal e administra R$ 500 milhões disponíveis para projetos socioambientais sustentáveis. Até o final do ano passado, o investimento era de R$ 90 milhões.
“Não tenho dúvida de que a obra anda como um relógio, que dinheiro não falta, que os prazos são todos cumpridos e que a engenharia é absolutamente perfeita”, disse o procurador Cazetta. “Enquanto as obras vão de jato, as condicionantes socioambientais vão de Fusca. É esse descompasso que é a nossa grande briga.” Ele acha que a parte destinada ao investimento social “está aquém das necessidades e tem uma execução de péssima qualidade”.
Capítulo 3
A hora de montar o quebra-cabeça
O diretor de construção da hidrelétrica de Belo Monte é o engenheiro Antônio Kelson. Cabe a ele lidar com o contratado Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM). Formado por dez das maiores empresas de construção pesada do país – entre elas Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão e OAS –, o CCBM é o responsável pelas obras de engenharia civil e pela contratação e capacitação dos trabalhadores (bons de greve, o que faz parte do jogo). Dez mil deles haviam recebido formação profissional, até o final do ano passado, em 30 cursos disponíveis – de instalador hidráulico a soldador, de garçom a motorista de caminhão pesado. Kelson cita alguns grandes números do que já foi realizado: 270 quilômetros de estradas internas, 100 quilômetros de rede de água e esgoto em Altamira, 4,6 milhões de metros cúbicos de concreto.
“A hidrelétrica de Belo Monte só será irreversível depois que o rio for desviado – e ainda falta muito para que isso aconteça”, afirma Pontes. “As ações do MPF não são contra a obra em si, mas contra a violação dos direitos das pessoas que são atingidas. É possível paralisar, corrigir o cumprimento das condicionantes e, então, retomar.
Na Voith Hydro, no alto do Jaguaré, é como se a batalha jurídica não existisse. “Acompanhamos, é claro, mas nosso foco é a produção das peças”, disse o diretor Gildo. Das peças e, acrescenta, de todo o projeto de automação de Belo Monte. É a criação de um sofisticado sistema computadorizado que permitirá o controle do complexo hidrelétrico pelo simples liga-desliga de botões, em diversos painéis. Já cuida dele, com sua equipe, o engenheiro eletrotécnico Marcos Hoffman. Ele tem 41 anos, 12 de Voith, e já automatizou coisa de 25 usinas nos últimos dez anos. Fala com emoção do momento mágico de ligar cada uma. “A de Peixe Angical (no Rio Tocantins) foi inesquecível”, diz, em sua sala cheia de computadores, painéis eletrônicos e colegas engenheiros. Tecnicamente correto é dizer, naquele momento: “Vamos comissionar a máquina!”, diz Hoffman. “É a hora de gerar energia, a hora H. Belo Monte será uma emoção especial, porque o desafio é maior.” Administrando a ferroada da arraia, que ainda doía, cinco dias depois, Felício Pontes afirma, retoricamente: “Só precisa que o governo e a Norte Energia convençam a Justiça de que os direitos dos povos da floresta não foram violados”. Até aqui – salvo uma outra liminar que sempre pode pipocar de última hora –, os empreendedores de Belo Monte estão conseguindo.
Nos primeiros 60 quilômetros transportando a bequilha de 72 toneladas – Taubaté-Atibaia, em arrastadas quatro horas –, Naldo ligou quatro vezes para a mulher, jogando conversa fora à custa da ligação gratuita ilimitada. “Eu mesmo já estou acostumado. Mas a Viviane eu tenho de ir adoçando, senão na volta não rola”, diz o tranquilo e bem-humorado pernambucano no primeiro trecho do estirão rodoviário. Ele conta, na cabine do caminhão, que namoram todos os dias, telefonicamente, quando a saudade aperta mais – e a tranquilidade do trecho ajuda. Ou então nas horas mortas – que são muitas. Naldo não passa das 19 horas na direção. Para a carreta, o mínimo possível – nos pedágios e no almoço. E o xixi? Aí toda essa tecnologia perde para a meia garrafa PET que está sempre ali por baixo. É só botar o caminhão no piloto automático. Lucinaldo está chegando em Belo Monte, missão cumprida, nesta segunda semana de janeiro. Podia ser no sábado, 11 – 65 dias depois –, ou no correr da semana. Até voltar para Viviane e os filhos, no Recife, sempre com a carreta, mais uns sete dias. Como ele disse nos idos de novembro: “O importante é chegar bem. Quando, só o papai do céu é que vai dizer”.
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