O Congresso samba no ritmo do Blocão
E o enredo dos aliados descontentes não exalta a presidente Dilma. Ao contrário: pode comprometer seu projeto de reeleição
DIEGO ESCOSTEGUY E LEANDRO LOYOLA, COM FLÁVIA TAVARES E MURILO RAMOS
12/03/2014 19h05
- Atualizado em
12/03/2014 19h11

Na tarde do dia 24 de fevereiro, o novo operador político do governo,
ministro Aloizio Mercadante, da Casa Civil, recebeu pela primeira vez os
líderes da Câmara daqueles nove partidos que, por enquanto, permanecem
aliados ao governo Dilma. São aqueles deputados que, de tão maltratados
nos últimos anos pelo Planalto, acabavam de articular a aliança informal
conhecida como “Blocão”. Com 260 deputados, é o maior grupo político no
Parlamento desde a redemocratização do país. Mesmo sendo governistas,
eles têm apenas um objetivo: sobreviver às eleições deste ano – ainda
que isso custe a reeleição de Dilma Rousseff. Para unir novamente os
destinos das duas partes, estavam lá o vice-presidente da República,
Michel Temer, principal interlocutor do PMDB com os parlamentares, e a
ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, uma espécie de
adjunta de Mercadante na inglória missão de negociar com o Congresso, em
nome de uma presidente que detesta políticos. Todos se reuniram na
ampla sala de reuniões da Presidência da República. A pompa necessária
ao ato de conciliação estava toda ali. A inteligência política, não.
>> Dilma enfrenta "rebelião" de deputados da base aliada. EntendaO encontro no Planalto era um gesto – na política, os gestos certos contam mais que as palavras certas. Um gesto que deveria servir para que os deputados expusessem com franqueza seus crescentes problemas na relação com o governo. Em seguida, receberiam de Mercadante os afagos que, em momentos como aquele, os políticos precisam ouvir. Que eles têm razão. Que o governo tudo fará para bem atendê-los.
>> Eduardo Cunha: "O PMDB não quer mais cargos"
A primeira parte do ato transcorreu como previsto. Os líderes disseram que suas bancadas se sentem cada vez mais abandonadas pelo governo e, em razão disso, os deputados temem não ter projetos e obras para inaugurar até as eleições. Sem mostrar serviço a seus eleitores, os deputados fatalmente perderão votos. É o cálculo mais simples da sobrevivência política: sem votos, sem mandato. Por isso, emendas parlamentares, aquela parte do Orçamento a que os deputados têm direito para investir em obras para seus redutos eleitorais, são tão fundamentais para eles. Cargos estratégicos nos ministérios, também. É neles que a caneta do governo despacha verbas para o benefício direto dos eleitores – dinheiro para construção de estradas, hospitais, escolas. Desde o começo do governo Dilma, o Planalto, embora prometa o contrário, não libera nem uma coisa nem outra.
Quando um governo dá dinheiro de menos e quebra promessas demais, o Congresso vira bicho. Quando alguém no governo exibe a arrogância típica de quem acabou de ganhar gabinete num palácio, pode ter certeza: o bicho vai morder. Mercadante tratou os deputados como se lhes fizesse um favor em recebê-los. Como se Dilma já estivesse eleita. Como se ela não precisasse deles para governar e se reeleger: sorte daqueles que escolherem o lado vitorioso. “Há mais partidos do que ministérios. Não tem lugar para todo mundo”, disse Mercadante, sobre as reclamações de que o governo não nomeou quem deveria na reforma ministerial. “Não estamos precisando de mais gente. A presidente Dilma tem 47% das intenções de voto. O Aécio (Neves, pré-candidato do PSDB) e o Eduardo Campos (pré-candidato do PSB) não sobem. Isso (receber ministérios e verbas de emendas ao Orçamento) é irrelevante. O que reelegerá vocês é tirar foto ao lado da presidente Dilma. Ela é quem será o cabo eleitoral de vocês.”
Os deputados seguraram o riso. Temer baixou os olhos. A reunião se tornara um desastre. Mercadante demonstrava enxergar as eleições de 2014 com a lente de 2010, quando o Brasil batia recorde de crescimento na economia e Dilma era uma novidade, avalizada pelo presidente mais popular na história do país. Dilma não é Luiz Inácio Lula da Silva, sabem os deputados. Nem fotos ao lado dela elegerão alguém. Dilma comanda um governo bem avaliado, é verdade. Mas a economia está travada, protestos ameaçam a Copa, os projetos do governo não saem do papel, e Dilma enfrentará dois adversários inteligentes: Aécio Neves e a chapa Eduardo Campos-Marina Silva. Não será um passeio. “Temos 13 minutos de tempo de TV”, disse Mercadante, ainda no mesmo tom altivo. “Não tem, não”, disse o deputado Givaldo Carimbão, líder do PROS, partido criado no ano passado. “Vocês têm cinco minutos. Os outros oito estão aqui, do outro lado da mesa.”
O líder do PMDB, Eduardo Cunha, o abre-alas do Blocão, aproveitou para falar. A relação do PMDB da Câmara com o Planalto está tão deteriorada que Cunha não despacha mais com Ideli nem comparece às reuniões com o governo. Estava lá somente por convite de Temer. “Quando o governo ia ao chão, nas manifestações de junho, todos nesta mesa ajudaram a dar estabilidade a Dilma no Congresso”, disse. “Fomos leais e, em troca, recebemos todo tipo de traição. Não queremos cargos na reforma. Não nos adianta. Não dá mais tempo. As eleições já estão aí.” Parece inacreditável, mas é verdade: o PMDB recusa cargos no governo, graças à inabilidade de Dilma em negociar com o partido.
Num caso extraordinário na política brasileira, o líder do PMDB no Senado, Eunício Oliveira, pré-candidato ao governo do Ceará, recusou um convite de Dilma para ser ministro da Integração Nacional. Não refugou, apenas. Sentiu-se ofendido. Ele e os demais líderes do partido. Eles haviam combinado com Dilma, havia meses, que o senador Vital do Rego, da Paraíba, seria o nomeado. Dilma quebrou a palavra empenhada. Ao convidar Eunício, queria, na verdade, tirá-lo da disputa ao governo do Ceará. Dilma e Lula preferem apoiar o candidato escolhido pelo governador Cid Gomes, do PROS. Uma manobra primária. O resultado dela? Eunício não só será candidato, como deverá se aliar ao PSDB – e dar um palanque a Aécio, num Estado onde Dilma teve muitos votos em 2010. Situações semelhantes se reproduzem em outros Estados-chave para a campanha de Dilma (leia no mapa).
Carimbão, assim como outros, ainda reclamou que esperava havia três semanas ser recebido por Mercadante. “Tenho 171 pedidos de audiência”, disse Mercadante, antes de pedir a Carimbão para lhe enviar um e-mail com o seu. Outro líder de partido aliado, Moreira Mendes, do PSD, pediu audiência a Mercadante no dia 2. Foi recebido três semanas depois. Ao cabo de três horas de conversa, Mercadante perdera, talvez irremediavelmente, o controle da Câmara. O Blocão está na rua, e o enredo dele pode decidir a reeleição de Dilma.
***
A resposta a Mercadante – a primeira mordida do bicho – veio naquela tarde. O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, do PMDB, autor do enredo do Blocão, colocou em votação um pedido da oposição para formar uma comissão de deputados para investigar denúncias contra a Petrobras. O pedido estava parado havia duas semanas. Henrique Alves se moveu estrategicamente: pôs o pedido em votação no mesmo dia em que a estatal divulgou seu balanço. O PT tentou bloquear a votação. Os deputados do Blocão passaram a tarde tripudiando em cima do governo. Nada era votado. A sessão servia apenas para açoitar a Petrobras.
No meio da sessão, o presidente da Câmara telefonou para a presidente da Petrobras, Maria Graça Foster. A ideia dele era convencê-la a comparecer à Câmara para dar explicações sobre as suspeitas de propina que pairam, há anos, sobre os contratos da estatal. Seria uma maneira de esvaziar o pedido da oposição. Alves, apesar de ser um dos líderes do Blocão, ainda tenta manter boas relações com o governo. Daí o telefonema. Graça Foster não atendeu a ligação.
Logo depois, após duas horas de debates no plenário da Câmara sobre a corrupção na Petrobras, a ministra Ideli finalmente ligou para Henrique Alves. “O que está acontecendo aí?”, disse. Henrique Alves não se aguentou. “Olha, Ideli, assim não dá. Vocês não sabem de nada, não fazem nada, não ajudam em nada. Eu desisto. Passar bem”, disse, antes de desligar o telefone e voltar ao plenário. O bicho queria só dar uma mordidinha – mostrar do que é capaz. O pedido de criação de uma comissão não foi aprovado. Ficou para a semana após o Carnaval.
As mordidas do Blocão, prometem os líderes do grupo, não envolverão projetos que possam causar desequilíbrio às contas públicas. Se eles mudarem de ideia, o prejuízo poderá ser enorme. O Blocão pode colocar em votação projetos como o que regulamenta a criação de novos municípios. Ou a fixação de um piso salarial para agentes de saúde. Ou a emenda constitucional que iguala salários de policiais em todo o país. Os três projetos teriam sérias repercussões nas contas públicas. O governo considera que, depois do que aconteceu na semana passada, a situação é irreversível. O relacionamento é tão ruim que líderes foram avisados de que Dilma não quer mais receber Henrique Alves. Nem Eduardo Cunha.
A retaliação do governo não tardou. Na quarta-feira, dia seguinte à sessão de descarrego em cima da Petrobras na Câmara, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, do PMDB, e Henrique Alves tinham uma audiência com o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Estava marcada para o meio-dia. Tratariam de dívidas da prefeitura do Rio. Paes voou para Brasília apenas para a reunião com Mantega. Ficou esperando cinco horas. Paes e Henrique Alves foram avisados de que seriam recebidos pelo secretário do Tesouro, Arno Augustin. No meio do caminho, Arno cancelou a reunião – e, minutos depois, Henrique Alves e Paes foram informados de que seriam recebidos por um funcionário de terceiro escalão da Fazenda. Houve palavrões entre a Câmara e o Palácio. Até que, no final da tarde, Mantega fez a deferência de receber os dois.
***
Esses três dias consolidaram o pior momento na relação do governo Dilma com o Congresso. “O mais grave é que essa crise cresce na hora em que a presidente mais precisa de apoio do Congresso”, diz um dos interlocutores políticos de Dilma. “Nenhum presidente sobrevive sem a estabilidade política que somente o apoio no Congresso confere. Todo presidente que achou que podia prescindir do Congresso fez um mau governo. Ou caiu, como Collor.”
Como o Blocão demonstrou no episódio da Petrobras, a estabilidade política no Congresso se dá mais pela proteção que os deputados e senadores concedem ao presidente – e menos pelos votos que podem subtrair em votações de interesse do governo. O risco, num regime presidencialista, é ao presidente, não ao bom funcionamento do governo.
O comportamento de Dilma, que se reflete na escolha de Mercadante e Ideli para a negociação política, sugere uma estratégia arriscada para vencer as eleições deste ano. Nos últimos meses, Dilma vem cumprindo uma extensa agenda de inaugurações de obras e entrega de equipamentos no interior do país. Dilma e seus conselheiros parecem acreditar que podem conseguir os votos de que precisam sem o intermédio dos palanques fornecidos pelos aliados no Congresso. Também parece acreditar que esses mesmos aliados não trabalharão contra ela, caso continuem a ser hostilizados pelo governo. Pode ser um erro.“Se Dilma não ganhar no primeiro turno, todos abandonaremos o barco, e ela perderá no segundo turno”, diz um dos mais experientes líderes do PMDB no Senado.
Os deputados do Blocão acreditam que o governo Dilma trabalha para que o PT obtenha uma hegemonia absoluta no Congresso, elegendo 130 deputados – hoje são 87. O PMDB está convencido de que Dilma sufoca deliberadamente a Câmara com projetos de urgência constitucional, que trancam a pauta do plenário, precisamente para impedir que os deputados de outros partidos possam mostrar resultado a seus eleitores. “Lutamos contra a hegemonia do PT”, diz um dos passistas do Blocão.
Essa preocupação é tamanha que, recentemente, um dos principais próceres do PMDB visitou o ex-presidente Lula. Ouviu, como sempre, que Dilma será a candidata. “Meu tempo já passou, e Dilminha está muito bem”, disse Lula. O interlocutor perguntou se Lula tinha certeza da decisão. “Sim, sim”, disse Lula. “É uma pena”, respondeu o peemedebista. “O Congresso pode discordar.”
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